Um rato chamado baldo.
A história, que agora passo a narrar, começou há muito tempo, lá no interior de Pernambuco, quando no Brasil ainda quase não existia eletricidade em todas as casas. Pois bem! É uma história real, que alguns poderão dizer que é irreal, mas... Deixa estar! Vamos ao que importa, e, assim, depois, dirão se é mentira ou verdade.
Estava o senhor Adeobaldo em uma Taberna, tentando beber sua preciosa cachaça, sossegadamente. Como não possuía muitos recursos, devido a uma vida de limitações, toda vez que ia beber, bebia aos poucos, para sentir o gosto da aguardente e saboreá-la lentamente.
Na Taberna estavam alguns músicos, de fora de Pernambuco, que gostavam de viajar tocando em terras estranhas. Era uma banda com um nome bem curioso, algo do tipo “Mágicos do Sertão”. Toda vez que se apresentavam, algo diferente acontecia.
Eles tocavam instrumentos que o Sr. Adeobaldo nunca tinha visto, mas não se importava, pois não possuía nenhuma cultura musical. Laborava o dia inteiro, e, de noite, a única satisfação que lhe enchia a alma era a cachaça. Havia, também, no mesmo recinto, alguns outros trabalhadores bebendo, comendo e ouvindo a música daqueles músicos desconhecidos.
Um dos músicos, após finalizar uma etapa da apresentação, passou um chapéu preto de couro antigo, quase rasgado, diante dos clientes, com a intenção de receber alguma coisa pela apresentação da banda. Todos davam um pouco do que tinham: vinte réis, cem réis, duzentos réis e por aí em diante. Quando chegou diante de Adeobaldo, que estava sentado perto do balcão, disse, educadamente:
__ Boa noite, senhor! Tem gostado de nossa apresentação?
__ Oxente...! Que apresentação? __ O homem não queria muita conversa, e deixou isso claro por meio de seu intemperismo, sua fala agitada e cantada com bastante sotaque pernambucano. Após falar, voltou-se ao copo que lhe chamava.
O músico ficou estarrecido por ter sido ignorado por aquele sujeito, daquele jeito:
__ Como assim, que apresentação?
Adeobaldo virou-se para ele novamente e disse, de forma bruta, como lhe era característico:
__ Homem, olhe aqui... Trabalho de sol a sol, na lavoura. Tenho as mãos calejadas, de tanto capinar e abrir buracos. Ganho meu dinheiro com muito suor para ter que dar para um sujeito como você, que se diz músico e que não faz nada durante o dia. Você acha que sou burro?
O desconhecido não sabia o que dizer, pois jamais esperaria uma ignorância como aquela:
__ Mas, meu senhor, nós também estamos trabalhando. Viajamos muito e treinamos bastante para trazer alguma alegria para todos vocês. __ O músico tentava se defender e defender sua classe.
__ Alegria para mim? Onde já se viu? Você, em algum momento, me viu olhando para onde vocês estavam? Ouvindo o que estão tocando?
__ Não sei, pois são muitos.
__ Muitos o queee, homem...? __ Adeobaldo olhou em volta. __ Quantos fregueses você consegue ver aqui? Uns sete?
O músico começou a contar em voz alta.
__ Por aí.
__ Sujeito, eu não sei ler e nem escrever, mas consigo muito bem dizer a você que aqui não tem nem sete, então faz o favor de sair de perto de mim, senão lhe encho as fuças.
O homem não gostou do desaforo. Sua raiva ficou representada na curva que fez com os lábios, em formato de bico:
__ O senhor é muito desaforado. Se o senhor encher minhas fuças, quem lhe garante que suas fuças também não ficarão cheias?
Adeobaldo levantou-se da cadeira e ficou de pé na frente do homem. Percebeu que o desconhecido era bem menor, ao que lhe disse, estufando o peito e cruzando os braços:
__ Quem vai me encher as fuças? Você? Com esse tamanho todo? Você é quase um anão. __ Adeobaldo agora falava com ironia e soltava alguns risinhos.
A conversa já estava beirando a discussão. Vários outros clientes da Taberna e músicos se aproximaram para saber do que se tratava. O músico explicou a versão dele, sendo apoiado pelos demais companheiros. Adeobaldo tentou explicar a versão que mais lhe convinha, porém fora impedido por alguns outros clientes que já tinham sido vítimas da ignorância daquele ranzinza. Uns viraram as costas para o acontecido, outros falaram ao mesmo tempo que o homem e alguns outros gritavam:
__ Ah! Deixa esse troglodita de lado... Ele é igual a uma topeira velha.
__ Pois bem, vocês não querem ouvir a minha versão, que assim seja. __ A irritação do homem fez com que ele tomasse o restante da cachaça de uma vez só.
Quando parecia que tudo estava terminado, o músico que havia ido pedir uns trocados pela apresentação virou-se para voltar ao palco e deu as costas para o lavrador. Este, como se o bicho tivesse tomado conta de seu corpo, se arrepiou todo e disse para o músico:
__ Espeeeere, homem! Quero lhe dar algo.
Quando o músico se virou para saber do que se tratava, Adeobaldo deu-lhe um soco bem na boca do estômago, o que fez com que o desconhecido caísse no chão sem ar, quase morrendo, sufocado. Houve um reboliço e todos os outros músicos partiram para cima do Adeobaldo, que desafiou um por um. Estava visivelmente alterado:
__ Podem vim todos vocês, seus maricas.
Quando eles iam pular sobre Adeobaldo, um outro músico, mais contido e que se mostrara chefe daquele grupo, gritou lá do palco:
__ Espere! Espere! Não façam isso!__ Ele desceu do palco e foi andando lentamente para perto da confusão. A “multidão” de clientes e músicos foram se abrindo até ele chegar próximo ao agressor. Ficou sondando Adeobaldo por algum instante e, em seguida, disse:
__ Sujeito, perde perdão aos músicos, pois viemos trazer alegria e um pouco de diversão a toda essa cidade maltratada pela fome e pela seca. Não viemos em guerra, mas em paz. Peça perdão, ou senão suas gerações sofrerão severas consequências.
O homem soltou uma enorme gargalhada:
__ Eu, pedir perdão? Para um bando de ratos como vocês? Jamais! Nunca farei isso.
__ Tem certeza de que quer isso? Lhe dou mais uma chance.
O músico parecia um mágico, daqueles antigos. Era bem misterioso em sua fala reservada. Adeobaldo ficou observando-o por alguns segundos, como se quisesse saber qual tipo de ameaça ele poderia lhe fazer e, como não viu nada que o colocasse em risco, disse:
__ Tenho absoluta certeza. Não vou pedir perdão algum. E tem mais, se você quiser, podemos tirar nossas diferenças agora mesmo. __ Adeobaldo foi falando e se posicionando para uma possível luta.
__ Então, tá! Foi você quem quis assim. Desde já eu amaldiçoo você e a sua geração. Se tornará um rato, e como tal viverá.__ Enquanto o músico falava, fazia gestos com as mãos formando sinais, que Adeobaldo jamais iria entender. __ Seus filhos, e os filhos dos seus filhos serão ratos, e você sentirá isso. Morrerá de desgosto, e, quando estiver a morrer, lá eu estarei para pegar o seu perdão.
Os olhos do músico chefe brilharam em um fogo azul, quando finalmente concluiu o seu discurso. Estavam fixos em Adeobaldo. Este sentiu um fiapo de medo quando percebeu aqueles olhos com um brilho estranho, mas não quis comentar. Achou que fosse por causa da cachaça que estava começando a fazer efeito.
__ Vamos embora, meus músicos, pois nesta cidade não há mais o que fazer. Vamos procurar outro ambiente onde sejamos mais bem aceitos.
Todos os músicos se recompuseram, ajeitando suas vestes negras com listras vermelhas nas laterais. O que havia levado o soco levantou-se e disse, com um pequeno sorriso:
__ Melhor do que um soco em você, foi a maldição que o mestre lançou. Terei prazer em ver os ratos saírem de sua prole, seu lixo. __ O músico, após terminar de falar, arrumou suas vestes e foi-se embora, de frente para Adeobaldo, olhando fixo para ele, preparado para qualquer outro golpe covarde.
Os artistas arrumaram suas coisas e foram embora, sob o protesto dos demais clientes, que queriam que eles ficassem:
__ Não vá! Deixe ele de lado! Não merece consideração! __ Disse um cliente, insatisfeito com o término da apresentação, um pouquinho bêbado.
__ E então, Adeobaldo, está satisfeito com o que você fez com o meu estabelecimento? __ Disse Firmino, o dono da Taberna.
__ Eu não fiz nada, Firmino. Estava aqui em meu canto, quieto, e aquele sanguessuga veio me importunar.
__ Veio nada! Veio pedir educadamente, como pediu a todos os demais. Custava você ser educado?
__ Ah! Não enche, homem. Me dê outra cachaça aí da mesma, que vou embora.
__ Vai mesmo! __ Disse o mesmo cliente. Estava ouvindo a conversa e parecia que queria levar uns tapas. __ E não volte mais, seu bruto.
Adeobaldo, sem dar atenção ao que lhe foi falado, pegou a cachaça que Firmino havia colocado, virou novamente, de uma única vez, fez caretas, pagou a conta e saiu, sem se despedir. Não tinha consideração alguma de ninguém que ali estava, e, se na vida tivesse consideração de uns cinco homens, era muito.
Na ida para casa, todo o trajeto foi feito a pé, pois não quis subir ao cavalo. Não havia luzes ao longo da estrada de terra cheia de cascalhos vermelhos. A lua cheia deixava a região levemente iluminada, acentuando algumas sombras de árvores tortas do sertão pernambucano. Passou por diversas encruzilhadas e ruas desertas, encontrando um ou outro conhecido. Ao chegar a um cruzamento, que era bastante conhecido por ser ponto de despacho, observou uma figura imponente com os braços cruzados, em um dos cantos da rua. Olhava fixamente para frente e parecia que estava esperando-o. Tinha mais de três metros de altura e era bastante forte. Adeobaldo tentou passar de lado, fingindo para si que não estava vendo nada e que estava sob o efeito da cachaça, mas não teve jeito. O ser misterioso lhe disse:
__ Você pode até fingir que não está me vendo, mas sei que está.
Adeobaldo parou, agora com medo, já que o outro era bem maior do que ele e possuía uma voz assustadora. Olhou-o vagarosamente e disse, com respeito:
__ Quem é você?
__ A pergunta não é essa.
__ E qual a pergunta?
__ Você saberá fazer. Foi amaldiçoado, sabe disso?
Adeobaldo, a princípio, não se recordou da maldição lançada sobre ele, mas, depois de alguns segundos, entendeu do que ele estava falando.
__ Como você sabe disso? Esteve por lá?
__ Estou em todo canto. Não teve medo? Confessa!
__ Não tenho medo de nada. __ Já estava mais confiante, entretanto, ainda assim, mantinha o respeito.
__ Sei que está com medo de mim. Não precisa, mas...__ Adeobaldo concordou apenas consigo e continuou ouvindo o que o ser tinha para falar. __ Daquele outro, deveria, porque o que lhe foi lançado é real.
Adeobaldo quis acreditar no que o desconhecido falava, então perguntou:
__ E como faço para acabar com aquela maldição?
__ Eu consigo acabar com ela.
__ Como?
__ Eu consigo acabar com ela e lhe dar algo que tanto almeja. __ O sujeito não ia direto ao ponto.
Adeobaldo tentou fazer um teste:
__ E o que eu tanto almejo?
__ Poder!
Após o desconhecido falar o que ele exatamente queria, Adeobaldo ficou animado, e então concluiu que ele estava falando a verdade.
__ Mas como consigo tudo isso?
__ Primeiro você precisa querer.
Sem pensar duas vezes ele disse:
__ Eu quero.
__ Ótimo! Agora você precisa me trazer duas coisas, muito peculiares, em um prato de prata. Você traz e coloca no meio desta encruzilhada, numa meia-noite, que assim acabarei com a maldição e lhe darei poder.
Adeobaldo pensou que ele estivesse se referindo à cachaça, a frango preto e a farofa. Achou fácil e concluiu:
__ Para quando você quer o despacho?
__ Despacho? Eu disse algo sobre despacho?
O homem agora estava apreensivo e engoliu seco, por já ter ouvido diversas conversas de que o capiroto... Sim! O capiroto! Ele já havia entendido que não era nenhum anjo que estava em sua frente. Então, já ouvira diversas conversas nas quais o capiroto pedira a alma quando oferecia algo do tipo. Mesmo assim ousou perguntar:
__ Mas, então... o que você quer?
__ Agora, sim, a pergunta correta. Quero uma ceroula do padre da cidade e um copo com o sangue dele.
Sobre o pedido, ele achou muito estranho, mas achou por bem não perguntar o motivo daquele desconhecido querer a cueca do padre. Pegar a ceroula era até fácil demais. Agora, conseguir o sangue do padre, coisa bastante difícil. Ficou extremamente espantado:
__ Bom, sobre trazer a ceroula, eu até consigo, agora, trazer o sangue do padre, meio complicado, hein.
__ Você sabe como proceder. Não aceito outro sangue. Não aceito que me engane. Sei de todos os seus passos.
Adeobaldo colocou as mãos no bolso tentando pensar, e o que melhor lhe veio à mente foi rejeitar tudo aquilo, e acreditar na possibilidade de que a praga do músico não iria vingar, ou que seria apenas uma farsa.
__ Homem, vamos deixar isso quieto, porque não vou conseguir trazer o sangue do padre.
__ Você é quem decide. Se quiser, já sabe; a ceroula e um copo com o sangue dele. Deixe tudo numa prataria ali, __ Ele apontava com um dedo. __ no meio da encruzilhada, à meia-noite de uma sexta-feira qualquer, e diga; “Aqui está a oferta, Agalharde. Não me deixe virar um rato.” Lembre-se de que a maldição foi lançada, e que a cada dia você sentirá os efeitos se intensificando. Chegará um dia que tudo acontecerá de uma única vez. Agora segue seu caminho, que vou seguir o meu. Tenho outros compromissos.
Agalharde colocou as mãos sobre os ombros, cruzando os braços. Fez uma saudação, inclinando o tronco para frente e, como num estalar de dedos, desapareceu. Adeobaldo ficou intrigado e achou que tudo aquilo era uma grande ilusão proveniente de sua cachaça. Pensou ele; “Aquele miserável do Firmino colocou alguma coisa em minha bebida”, e então resolveu seguir o caminho de casa.
Passados alguns dias daquele encontro, Adeobaldo já não mais se lembrava do ocorrido. Em sua cabeça tudo não passou de um momento de embriaguez, pelo cipó forte que havia tomado na Taberna. E assim foi levando sua vida tranquilamente. Depois de alguns anos, arrumou até uma namorada, que se tornou sua esposa alguns meses depois, e isso sepultou de vez o encontro que teve, pois vivia em uma alegria constante. As coisas começaram a mudar, ou desandar, depois que estava casado e sua esposa já estava grávida de sete meses. Aos poucos foi sentindo a mudança.
Numa manhã, após ser despertado pelo canto do galo, quando foi calçar a bota, para ir à lavoura, notou que estava apertada demais, que não entrava em seu pé. Como estava muito cedo e escuro ainda, foi até uma lamparina que se encontrava na cozinha, apenas calçado com a meia. Carregava a bota na mão. Colocou o pé sobre uma cadeira, tirou a meia, aproximou a lamparina e qual não foi o seu espanto quando percebeu um pé achatado, com os dedinhos magros, compridos e com unhas afinadas. Seu pé estava bastante rosa, e havia pequenos cabelos crespos e duros, como se fosse de um roedor, até próximo da metade da canela. Deu um grito de horror, o que fez acordar sua esposa. Deixou a lamparina cair e tratou de tirar a meia do outro pé para saber se estava do mesmo jeito. Sua surpresa ficou completa quando percebeu a mesma coisa. Jurema chegou espantada pelo grito, ajeitando a camisola:
__ O que foi, homem, alguma cobra te picou?
Adeobaldo, assustado, tentou se esconder atrás da mesa e disse:
__ Não foi nada, mulher.__ Passou as mãos pelo rosto para tentar descobrir se havia mais alguma coisa diferente. Nada encontrou.
Correu até o quarto para se ver em um espelho bastante velho e confirmar o que suas mãos lhe indicaram. Sua esposa o acompanhou:
__ Mas homem, você está ficando doido, é?
Como ainda estava no escuro do fim da madrugada, ela não percebeu os pés diferentes. Ele ficou se olhando no espelho, segurando uma outra lamparina, de lado, procurando algo que ainda não existia. Passou a mão enfurecida diversas vezes pelas orelhas, pelas sombrancelhas, pelos cabelos e, para o seu alívio, não encontrou nada diferente. Então disse para sua esposa, tentando espantar o susto:
__ Foi apenas um pesadelo. Vai dormir, mulher, que eu vou trabalhar, visse?
Sua mulher obedeceu e voltou a se deitar, sem antes murmurar:
__ Homem doido! Se bem que me avisaram.
Adeobaldo não deu importância para o que ela disse, pois estava bastante preocupado com a mudança de seus pés.
Percebeu que Jurema foi se deitar, olhando por cima do ombro. Voltou para a cozinha, pegou a lamparina que havia caído no chão e observou mais atentamente os seus pés, para não ter dúvidas do que tinha visto:
__ Cruz em credo... Isso é maldição daquele músico. Estou virando um rato de verdade. Valha-me Deus!
Adeobaldo ficou extremamente assustado com tal constatação. Tentou esconder os pés com as meias e amarrou outros panos em volta, para protegê-los, já que nenhuma bota servia. Aquilo acabou com o seu dia que estava apenas começando, às cinco da manhã. Não conseguiu trabalhar direito, pois pensava o tempo todo a respeito.
Após terminar o trabalho que foi executar no campo, com muita dificuldade, porque não conseguia se concentrar, pensou em ir falar com o padre, se confessar, pedir perdão pelos pecados, ou seja lá o que fosse, para acabar com aquela maldição. Sua esposa já havia se levantado e feito o café-da-manhã, quando ele chegou, por volta das oito horas, após sua primeira jornada de trabalho. Viu o que Adeobaldo havia colocado nos pés e foi logo perguntando:
__ Mas, homem, o que é isso nos pés?
__ É um pano velho, porque a bota não serve mais.
__ Mas essas botas são tão novas. __ O comentário da esposa foi apenas para não ficar calada, enquanto se servia de café.
__ Mulher! Você é surda? Eu disse que não serve mais.
__ Hoje você tá atacado, hein. Eita homem bruto!
Adeobaldo se chegou à mesa, puxou uma cadeira e sentou, para fazer seu desjejum. Estava com cara de poucos amigos.
__ Vou ter que sair. Vou à cidade.
__ Posso ir contigo? Tenho que comprar algumas coisas.
O homem pensou rápido e disse:
__ Pode.
__ Mas, onde você vai?
__ Vou na igreja. Preciso conversar com o padre.
A esposa ficou surpresa:
__ Conversar com o padre? Mas você nunca conversa com o padre! O pesadelo foi grande mesmo, hein.
__ Jurema, você não está vendo que estou de mau humor? Não quero conversar. Me deixa quieto.
__ Acho que você está de mau humor todos os dias.
__ E por que você se casou comigo?
__ O amor não se importa com essas coisas.
O homem teve que se calar, pois entendeu que, talvez, a única pessoa que o amasse fosse aquela mulher, já que seus pais já não mais existiam, e porque possuía diversos inimigos.
__ Tá! Termina de comer, se arruma e vamos embora. Vou preparar a carroça.
Ao terminaram de tomar o café da manhã, Jurema se arrumou, enquanto Adeobaldo aprontou a carroça. Eles saíram e, no percurso, não houve muita conversa. A mulher achou bastante estranho aqueles panos nos pés de seu esposo, mas, como ele estava todo estranho, desde a madrugada, preferiu não comentar nada, e assim seguiram viagem.
Após quase duas horas andando por estradas tortas e mal conservadas, eles chegaram à cidade. Adeobaldo deixou Jurema em uma loja de tecidos e disse que passaria por lá para buscá-la, em uma hora, mais ou menos. Em seguida, antes de se dirigir à casa do padre, ele passou numa loja de calçados de roça e comprou uma bota que cabia perfeitamente em seus enormes pés. Experimentou o novo calçado longe dos demais clientes. Sentiu-se mais confortável, pagou e, sem pestanejar, rumou para a casa do padre.
Chegando lá, percebeu que estava tudo fechado. Gritou:
__ Padre! Ó seu padre! Padre Marcelo...!
O padre Marcelo era um sujeito engraçado: baixinho, gordinho e quase não se via o pescoço. Possuía cabelo branco, grande e ralo, um nariz achatado e enormes olhos caídos pela idade. Ele saiu da casa, para cumprimentar o visitante, com cara de quem estava dormindo.
__ Adeobaldo... Que milagre você por aqui? Entre!
Adeobaldo deixou a carroça estacionada na frente da igreja, no lugar apropriado, e entrou.
__ Mas me diga, homem, o que lhe traz aqui a essa hora?
__ Padre, preciso muito de sua ajuda.
__ Meu filho... eu estou aqui para ajudar. __ A voz do padre era mansa e arrastada. __ Me diga, como posso te ajudar?
Adeobaldo coçou a garganta e olhou em volta meio constrangido. Não sabia como começar:
__ Padre, eu... fui amaldiçoado um tempo atrás por um músico. __ O padre prestava bastante atenção, enquanto servia café para os dois. __ Eu não acreditei, mas hoje veio a confirmação da maldição. O senhor precisa me ajudar a acabar com a praga.
O padre Marcelo estava desconfiado da situação:
__ Mas, meu filho, qual foi a maldição?
__ Eu briguei na Taberna do Firmino com um músico, aí veio outro e me amoldiçoou. Disse que eu iria virar um rato.
O padre sorriu ironicamente. Adeobaldo não gostou, pois estava bastante sério:
__ Virar um rato, é?
__ Pois é padre, a coisa é séria. Eu gostaria que o senhor não sorrisse da minha desgraça.
__ Desculpe, meu filho, não estou sorrindo de zombaria... Mas me diga, como você sabe que a maldição está surtindo efeito?
__ Tenho como provar. Meus pés estão diferentes.
__ Então prove. Mostre-os!
Adeobaldo foi obrigado a mostrar ao padre a forma concreta da maldição. Ele novamente coçou a garganta, olhou em volta, como se estivesse investigando se havia alguém por perto, e disse:
__ Mas padre, o senhor precisa me prometer que não vai contar a ninguém.
__ Meu filho. Tudo o que se passa por aqui, eu mantenho segredo. Pode confiar em mim, que não vou contar nada.
__ Então tá.
Adeobaldo levantou as pernas das calças, lentamente, e foi retirando as botas. O padre, como não estava acreditando no que ele estava dizendo, terminou seu café e disse que iria ao banheiro e que voltaria em um minuto. Foi o tempo de Adeobaldo retirar as botas e as meias.
Quando o padre voltou para a sala, o visitante estava com os pés por sobre uma mesa de centro, para deixar visível a ele o que queria mostrar. O religioso chegou à sala e viu aqueles dois pés em formato de pés de ratos. Soltou um grito escandaloso que pôde ser ouvido lá da rua.
__ Ave maria, Cruz em credo... Vade retro, Satanás!
Tentou buscar todos os credos, por tamanho susto que passou.
__ Calma, padre! Calma! Sou eu, Adeobaldo. Preciso de sua ajuda. __ Disse o homem, levantando-se e indo acudir o padre.
Algumas pessoas que passavam pela rua naquele momento, em frente à casa, ouviram os gritos e entraram correndo para saber o que estava acontecendo. Adeobaldo teve tempo de esconder os pés, enfiando-os nas botas, pois entraram gritando pelo padre, que rapidamente dispensou-os, para analisar melhor a situação do homem com pés de rato. Em seguida, mais contido, disse para Adeobaldo, sentando-se:
__ Meu filho, essa maldição veio do inimigo vermelho, sabe qual que é, não é mesmo?
__ Sei sim, padre, por isso preciso de sua ajuda.
O padre esforçou-se para se concentrar. Fez caretas, pensou alto e andou pela sala, sendo acompanhado pelo olhar de Adeobaldo. Em seguida pediu:
__ Deixa eu ver isso novamente.
Adeobaldo mostrou a ele. O padre pegou na ponta de um dos dedos, com uma expressão de nojo:
__ Isso dói?
__ Dói não.
__ Sente tudo normal?
__ Absolutamente.
__ Jurema sabe disso?
__ Sabe não.
__ Melhor contar a ela, não acha? Porque você vai precisar do apoio dela.
__ Achei melhor vim conversar com o senhor primeiro. Já viu algo assim?
__ Assim não, mas já ouvi alguns relatos a respeito.
__ E o que eu faço, meu padre, me ajude. __ Adeobaldo agora demonstrava desespero.
O que mais o preocupava era que, como o músico disse que ele iria se tornar um rato, então pensava que os pés seriam apenas o começo. Imaginava como seria quando o rosto começasse a se transformar, o que seria muito pior. Iria ter que morar sozinho no sertão, se alimentando como um roedor, e iria ficar longe de Jurema e de seu filho que estava por nascer.
Após muito pensar, o padre disse:
__ Meu filho, vou te dar um litro de água benta para você passar por todo seu corpo quando for dormir. Deverá rezar cem ave-marias e cem pai-nossos. Se precisar de ajuda pode me procurar a qualquer hora.
O padre preparou a água benta, alguns objetos religiosos e mais uma infinidade de conselhos para Adeobaldo, que já havia colocado as meias e as botinas. Quando o coitado do lavrador foi embora, o padre ficou mais aliviado, e disse consigo mesmo:
__ Ufa! Graças a São Benedito que esse homem foi embora. Que aberração da natureza!
Adeobaldo voltou, conforme combinado com Jurema, à casa de tecidos para buscá-la. Ambos rumaram para casa. Quando eles estavam passando pela encruzilhada, onde o lavrador havia encontrado Agalharde, lembrou-se da conversa que teve com ele e pensou em procurá-lo, caso a simpatia do padre não surtisse efeito. Estava triste por não ter acreditado na maldição. Resignado, ficou calado o dia inteiro e nem a botina tirou, mesmo estando em casa. A mulher, já conhecedora da esquisitice de seu marido, não o pertubou e assim ficou quietinha no canto dela.
À noite, Adeobaldo fez conforme o padre havia lhe ordenado, tomou banho, passou água benta em todo o corpo, procurou um cantinho em sua casa para rezar e disse à mulher que não queria ser incomodado. Começou a rezar suas cem ave-marias e seus cem pai-nossos acreditando que fosse dar certo. Ao dormir, a esposa, que já estava adormecida, despertou e perguntou, receosa, porque ele estava rezando, já que nunca o havia visto rezar. Ele disse que não era nada, que estava com muito sono e que queria dormir. Adormeceu em seguida, crente que o ritual que praticou havia resolvido sua situação.
Quando acordou, a primeira coisa que fez, ao se levantar e ir à cozinha, foi ver se os pés haviam voltado ao normal. O desespero bateu-lhe novamente quando conseguiu visualizar que, ao invés de o problema ter sido resolvido, acentuou-se, pois agora eram as mãos que haviam se transformado em mãos de rato. Sentiu-se angustiado, choroso e perdido. Sua mulher, ouvindo os barulhos estranhos, acordou e ficou espiando atrás da porta. Adeobaldo estava inconsolável. Andava de um lado para o outro, olhava as mãos e, em seguida, os pés, chorava e lastimava. Batia com as mãos na cabeça, se ajoelhava e outras coisas mais. Ele disse em voz alta:
__ Padre! O senhor precisa me ajudar. Não conheço mais ninguém.
Então virou-se para ir ao quarto. Sua esposa percebeu e voltou, em passos rápidos. Fingiu que estava dormindo. Sua barriga de sete meses não a atrapalhava.
Adeobaldo entrou no recinto, procurou e pegou uma luva de vaqueiro que estava sobre o guarda-roupa, se arrumou e saiu. Jurema levantou-se quando percebeu que ele tinha saído de casa, foi até a janela e ficou espiando Adeobaldo ajeitar o cavalo, pular sobre ele e correr em disparada. Sabia que ele estava indo visitar o padre, por causa de algo bastante sério, mas não imaginava o motivo. Ficou muito preocupada e começou a chorar.
Adeobaldo chegou à cidade em trinta minutos, tamanha rapidez que impôs ao cavalo. Aproximando-se da casa do padre, amarrou o cavalo no devido lugar, do outro lado da rua, olhou de um lado a outro, para ver se vinha alguém, e foi andando lentamente em direção à casa. Como não viu ninguém, entrou sorrateiramente no quintal da igreja. Foi até a janela do quarto do padre e bateu, chamando-o, sussurando, para não acordar os vizinhos:
__ Padre! Padre Marcelo, acorde, estou desesperado, meu padre. Sou eu!
O padre abriu uma pequena fresta e, olhando, perguntou quem era:
__ Quem é que ousa perturbar o sono do ministro do senhor a essa hora da madrugada, sendo que o sol nem nasceu ainda?
Adeobaldo desconfiou de que o padre estava bêbado:
__ Padre, o senhor bebeu? Sou eu, Adeobaldo.
__ Meu filho. Entre! Entre! __ O padre foi abrir a porta da sala, ainda de ceroulas. __ Eu não estou bêbado, meu filho, quer dizer, apenas bêbado de sono.
O quase rato observou uma garrafa de vinho sobre a mesa e dois copos sujos, mas não quis comentar nada:
__ Padre, a coisa piorou.
__ Por quê? A água benta não surtiu efeito?
__ Deu efeito não, padre. E agora, olha só! __ Adeobaldo tirou as luvas e mostrou as mãos. __ Estou me transformando em um rato, padre.
__ Meu filho, eu fiz o que era pra fazer. Vamos ter que chamar o bispo para resolver essa sua situação, porque a tendência é só piorar.
Adeobaldo percebeu que seria inútil continuar a conversa com aquele padre, que estava bêbado e que, ainda por cima, estava com companhia, o que sugeria que ele havia feito sexo, pois roupas estavam jogadas pela sala, o que é proibido aos ministros da Igreja. E pior, não sabia se era masculina ou feminina.
__ Mas, padre, até o bispo chegar aqui eu já virei um rato por completo.
__ Pois é, meu filho, mas temos que esperar. Enquanto isso, continue rezando o que eu te falei. Quando ele chegar, eu mando te chamar. Agora você precisa ir, porque eu tenho que descansar. Logo mais terei que visitar alguns fiéis.
O padre praticamente enxotou Adeobaldo e fechou-lhe a porta. O lavrador ficou furioso e pensou até em arrebentá-la, arrebentar a cara do padre e, quem sabe, talvez, o machinho dele. Mas, de repente, uma memória lhe sobreveio: “Eu posso resolver isso... basta a ceroula do padre e o sangue dele num copo.” Esperou um pouco, até que o padre estivesse, talvez, dormindo, foi até o tanque e começou a revirar um monte de roupas sujas. Encontrou uma ceroula branca, com uma listra suja enorme, e deduziu que fosse a do ministro da igreja. Falava consigo mesmo:
__ Miserável, você vai me pagar, seu padreco safado. __ Guardou a ceroula dentro de um dos bolsos da calça.
Ajeitou o chapéu de couro cru, abriu o portão da igreja bem devagar para não fazer barulho e não ser reconhecido, andou até o animal e pulou sobre ele, em um impulso. Bateu as esporas, o que o fez sair em disparada.
Aquele dia foi igual ao dia anterior: triste. Jurema, volta e meia, perguntava o que estava acontecendo, quando ele chegava à casa, mas ele sempre mudava de assunto. Já não estava ignorante com ela, como antes, pois se colocava como culpado. Pensava: e se seu filho nascesse como um rato? Isso o deixava com a consciência pesada e abatido, pois amava Jurema. Ficou o dia inteiro de luvas e botas, até de noite.
Quando estava bem escuro, quase meia-noite, disse para Jurema que estava indo para a Taberna do Firmino. Foi direto para a encruzilhada, pois queria encontrar Agalharde. Chegando lá, amarrou o animal em uma cerca, ficou no meio da encruzilhada e gritou:
__ Ei! Quero falar contigo. É sobre aquele trato.
Gritava aos ventos, porque não havia ninguém, e nenhum morador passava pelo local. Gritou mais alto.
__ Ei! Aparece! __ Não chamava Agalharde pelo nome porque não se lembrava.
De repente, Agalharde apareceu atrás dele, o que lhe deu um enorme susto:
__ Rato... Você estava me chamando?
Adeobaldo se arrepiou todo com a menção do nome rato. Tentou manter a calma:
__ Sim, estava. Mas não lembrava o seu nome.
__ Agalharde. __ O desconhecido apresentou-se novamente. __ Diga, o que queres?
__ Não quero ser um rato.
__ Mas já és. Olhe suas mãos e pés, o padre não resolveu?
__ Aquele padre é um bêbado. Nunca vai me ajudar. __ Agalharde deu um riso sombrio.
__ Eu sempre soube disso.
Adeobaldo contemplou, por um momento, o sorriso zombeteiro de Agalharde e, em seguida, perguntou:
__ A proposta, ainda está de pé?
__ Sempre. __ O comportamento do gigante era de um completo desinteresse.
__ Então eu vou fazer. Já peguei a ceroula. __ Ele tirou a peça íntima do padre, de dentro do bolso da calça e a mostrou.
__ Eu disse que deveria ser a ceroula e um copo de sangue. Trouxe uma parte, e a outra?
__ Eu vou conseguir. Primeiro eu precisava saber se o trato ainda estava de pé, porque, para trazer o sangue do padre, vou ter que usar de ignorância.
__ Que assim seja. Era só isso?
__ Só!
__ Então vou embora.
__ E quando pode ser?
__ Você tem pressa?
__ Muita!
__ Pode ser amanhã. Será uma boa noite, já que teremos lua cheia.
__ Meia-noite, não é mesmo?
__ Isso. E sabe como me chamar pelo nome, não é?
__ Eu gravei. É Agalharde.
__ Correto. Te aguardo e venha sozinho, senão nada vai funcionar. Vou embora.
Agalharde, fazendo o mesmo cumprimento da primeira vez, num piscar de olhos, desapareceu. Adeobaldo, sentindo alí um fio de esperança, pegou seu cavalo e, caminhando, voltou para casa. Pensou até mesmo em dar um ida na Taberna do Firmino, mas sentia vergonha. Por causa da ignorância dele, estava daquele jeito. Resolveu voltar a pé mesmo, puxando o animal pela corda, para ter mais tempo para pensar. Precisava arquitetar como faria para conseguir o sangue do padre. A primeira coisa que pensou foi no prato de prata. Tinha um, herança de sua avó. Iria usá-lo. Chegou a casa, sua esposa já estava dormindo. Trocou-se e foi dormir, satisfeito por saber como iria resolver tudo aquilo, mesmo sabendo que, logo, logo, teria mais alguma coisa de rato em si.
No dia seguinte acordou, sempre com o canto do galo, mais aliviado, porque tinha certeza de que iria resolver tudo. Foi até a cozinha, curioso para saber o que havia aparecido, dessa vez. Sua curiosidade não era alegre. Era tensa. Olhou os pés e as mãos, estavam da mesma forma. Tateou o rosto e percebeu que o nariz havia diminuído e estava, agora, quase achatado, com apenas dois furinhos e com a pontinha úmida. Percebeu bigodes finos e duros saindo de sua face, como bigodes de ratos. Não se assustou, porque tinha plena convicção de que aquele dia seria o último dia em que ele estaria com vestígios de ratos.
Saiu mais cedo do que de costume de casa, para que sua esposa não o visse daquele jeito. Pegou uma touca velha e foi para a roça. Por lá ficou até por volta do meio-dia. Não aguentando mais o sol escaldante do sertão, e como aquela terra era bastante seca e quase não havia árvores frondosas para descansar sob elas, uma alternativa era se refrescar um pouco em casa.
Quando chegou, teve que enfrentar a fúria de Jurema, pois ela já estava cansada daquelas esquisitices, que apareceram de um dia para o outro. Ele ainda estava usando a touca. Apenas os olhos ficaram descobertos:
__ Adeobaldo, preste atenção. Eu te amo muito, mas não vou tolerar mais essa sua esquisitice. O que está acontecendo?__ Adeobaldo não queria falar sobre o assunto. __ Olha só para você. Não tira essas botas e nem essas luvas, e agora essa touca na cabeça, o que está acontecendo? Exijo saber de tudo, pois sou sua esposa.
Jurema possuía muita fibra. Era muito aguerrida e, quando desconfiava de algo, ia até o fim, até saber tudo:
__ Não quero falar sobre isso, mulher.
__ Mas eu quero. __ Ela foi em direção a ele com o intuito de retirar a touca. Ele se desvencilhou dela. __ Olha isso. Tira isso quando eu falo contigo.
Adeobaldo respondeu de forma brusca, quando escorregou para o lado:
__ Não mexa em minha touca.
Jurema não conteve o choro:
__ Você está ficando louco, Baldo?__ Ela o chamava de Baldo quando estava carente e chorosa. __ Não me ama mais?
Mesmo sendo um sujeito bastante rude, Adeobaldo a amava de verdade, e vê-la sofrendo daquele jeito, sobretudo grávida, afetou-lhe a alma e teve vontade de falar toda a verdade:
__ Eu não posso te contar.
__ E por que não? Sou sua esposa. Deixe-me te ajudar.
Adeobaldo sentiu um nó na gargante e uma pequena lágrima escorrer, que foi absorvida pelo pano cru da touca, quando percebeu que sua esposa estava, realmente, sofrendo. Resolveu se abrir com ela.
Sentou numa cadeira, ainda na varanda, e disse:
__ Foi uma maldição.
Ela conteve o choro, lentamente e, limpando as lágrimas, recomeçou o diálogo.
__ Maldição? Como assim?
__ Antes de eu te conhecer, um sujeito me lançou uma maldição. Eu não acreditei, e agora a maldição começou a fazer efeito.
__ Como assim?
__ Ele disse que eu iria me transformar num rato, eu e meus herdeiros. Foi numa briga lá na Taberna do Firmino.
Jurema virou o nariz à menção da Taberna, pois não gostava do lugar, e resolveu deixar isso claro.
__ Nunca gostei daquele lugar.
__ Eu não voltei lá mais, porém aconteceu, e agora estou aqui, me transformando em um rato. Meus pés, minhas mãos e meu nariz já se transformaram.
Ela estava incrédula com a declaração de seu esposo. Quis confirmação:
__ Deixa eu ver.
__ Você está grávida. Não pode se assustar vendo essas coisas.
Ela colocou-se diante dele, convicta de sua vontade:
__ Quero ver, definitivamente. Se isso é verdade, não vai atingir somente a você, vai me atingir, e a meus filhos também.
Adeobaldo ficou pensativo por um momento e, lentamente, foi se desfazendo de seus aparatos. Primeiro as botas, depois as luvas e, por último a touca. Jurema estava ficando perplexa com tudo aquilo, à medida que ele ia se mostrando. Sua cor sumiu e disse que precisava de água. Adeobaldo foi até o filtro de barro e, com dificuldade, conseguiu pegar a água em um copo:
__ Meu deus... Como isso aconteceu?
__ Não sei! Simplesmente aconteceu.
__ E agora?
__ Naquela mesma ocasião, quando eu estava vindo embora, um sujeito me apareceu dizendo que poderia acabar com a maldição, mas, para isso, ele iria precisar de duas coisas absurdas.
__ Quem é esse sujeito? O que ele quis?
__ Não sei quem é.
__ Deve ser o bicho. O que ele quis? __ Jurema agora estava sentada, porém trêmula.
__ Ele pediu a ceroula do padre e um copo com o sangue dele, tudo em uma tigela de prata.
__ Creio em Deus pai.... Ave maria! Por isso você foi até o padre? Pegar o sangue dele? __ Jurema ficou espantada.
__ Não! Claro que não... Eu fui até o padre pedir ajuda, mas percebi que ele jamais iria me ajudar, pois além de ser um bêbado, ainda faz sexo.
__ Como você sabe disso?
__ Eu fui ontem lá onde ele mora, cedinho, e vi dois copos sujos de vinho.
Jurema estava desapontada, já que era uma fiel assídua da igreja.
__ E como sabe que estava com alguém?
__ Porque tinha roupas pela sala.
__ Xiiii... E agora?
__ E agora vou fazer o que aquele sujeito pediu. Já peguei até uma ceroula do padre, só falta um copo com o sangue dele.
__ Ave maria! __ Jurema se benzeu de novo e ficou toda arrepiada. __ Você vai matar o padre?
__ Claro que não! Só vou pedir um pouco do sangue dele.
__ Mas ele não vai querer te dar.
__ Aí eu pego na marra. __ Adeobaldo mostrou uma faca bem afiada. __ De um jeito ou de outro eu saio de lá com um copo de sangue daquele padre.
__ Mas Baldo, isso é pecado, e você poderá ser preso.
__ Preso? Neste fim de mundo? Jamais...
A bem da verdade, o lugarejo era mesmo um fim de mundo. Havia apenas uns dois policiais que trabalhavam por lá: hora estavam dormindo, hora jogando baralho, hora bebendo. Estavam longe de cumprir com as obrigações dos homens da Lei.
Jurema ficou apreensiva durante todo o dia. Era só lembrar da situação, que começava a chorar. Adeobaldo chegava perto e colocava o focinho úmido no pescoço dela tentando acalmá-la, mas não resolvia. Piorava a situação. Ela sentia repugnância. Ele passava a pata por sobre o seu filho, e o bebê começava a chutar, como se estivesse entendendo a situação. A mãe olhava as patas de rato, fechava os olhos, e voltava a chorar.
Quando a noite chegou, por volta das vinte horas, Adeobaldo se arrumou, colou as botinas, as luvas e, por último, a touca. Jurema foi se despedir dele na saída:
__ Mulher, hoje eu resolvo tudo isso. Amanhã estaremos em paz. Assim, teremos o nosso filho com muita saúde.
Jurema estava bastante triste e pensativa. Tinha absoluta certeza de que Adeobaldo iria matar o padre. Porém, lá no fundo, sentia esperança de ele ficar bom:
__ Baldo, não mate o pobre do padre. É pecado homem.
Adeobaldo terminava de se arrumar, enquanto respondia:
__ Não se preocupe, minha querida, não vou matá-lo. Preciso apenas de um pouco do sangue dele.
__ E se for mentira daquele homem?
__ Aí vou me tornar um rato para o resto de minha vida. Infelizmente vou ter que te abandonar, e se isso acontecer, quero que você viva a sua vida e cuide de nosso filho como se eu tivesse morrido.
__ Por quê? Vai me abandonar?
__ Como vou ficar contigo, Jurema, sendo um rato? Não tem como.
__ Daremos um jeito. Eu cuido de você.
__ Nem pensar, mas não se preocupe. Vá para dentro, feche as portas e me espere voltar.
__ Vou te esperar.
Adeobaldo sentiu vontade de dizer que a amava, mas não conseguiu. Ficou olhando-a chorar, e seus olhos se encheram de lágrimas, novamente. Encostou os dedos, ou melhor, as patas, nos lábios e, em seguida, tocou nos lábios dela, e fez uma carícia na barriga. O bebê estava quietinho.
Em seguida, subiu ao cavalo, que havia selado, deu esporadas na barriga do bicho e foi embora. Jurema ficou observando-o sumir na escuridão, em seguida entrou em casa, fechou tudo, e foi rezar, pedindo ajuda a todos os santos.
No caminho, Adeobaldo sentiu uma mistura de sentimentos, principalmente raiva e arrependimento. Jurava que, se algum dia tivesse a oportunidade de encontrar aquele maldito músico novamente, iria cortar o pescoço dele.
Encaminhou-se para a cidade, quando já estava tudo quieto, com a intenção de pegar um pouco de sangue do padre. Dizia ele pelo caminho, em voz alta:
__ Mas padre, é apenas um pouquinho de sangue. Não vai doer...
Falando assim, ele tentava se convencer de que era para o bem a retirada do sangue do padre beberrão.
Quando chegou perto da casa do ministro da Igreja, deixou o cavalo a uma certa distância, observou se alguém passava por perto e, como não via ninguém, foi andando, junto às cercas tortas, bem devagar, e sem levantar suspeitas, em direção à casa do padre. Estava armado com uma faca bastante amolada e de um recipiente onde iria guardar o sangue.
Na entrada da casa, olhou para todos os lados, e até mesmo para cima, para certificar-se de que não havia ninguém àquela hora. Entrou suavemente, sem fazer barulhos. Percebeu que a luz da casa do padre Marcelo ainda estava acesa, e pôde ouvir algumas gargalhadas. Conseguiu identificar três vozes lá dentro. Uma delas – possivelmente a do padre – estava contando uma piada bem debochada. Era cheia de palavrões. A outra voz era feminina, e a terceira voz masculina. Adeobaldo disse baixinho:
__ Miserável! É padre... se eu tinha algum receio em arrancar teu sangue, agora não tenho nenhum. Minha consciência ficará bem tranquila.
Ele esperou, encostado em uma parede escura, aos fundos do quintal, que os donos das vozes estranhas fossem embora. Ficou nervoso porque estava demorando, e eles não iam embora, até que a porta se abriu, um conhecido saiu e, despedindo-se do padre, foi embora.
A dona da outra voz continuou lá dentro. Baldo se aproximou da janela e, vendo só com um olho o que se passava, percebeu que a mulher não iria embora tão cedo. Resolveu entrar assim mesmo. Olhou mais um pouco ao derredor, respirou fundo, falou para si da necessidade de fazer aquilo, sentiu suas veias saltitando e, num impulso, abriu a porta de uma vez. A amiga do padre se levantou com o susto e deu um grito histérico. Já o padre, como estava bêbado, demorou para entender o que havia acontecido.
__ O que está acontecendo... Adeobaldo? O que está fazendo aqui? __ Perguntou reconhecendo Adeobaldo, quando este tirou a touca. __ Mas o que houve com o seu nariz? Jesus... Você está com um nariz e bigode estranhos. __ Ela ficou assustada com a constatação de que havia algo de errado com Adeobaldo, que estava com uma enorme faca erguida. Ele não se importou com o comentário.
__ Bem que eu desconfiava, Francisca, você, uma freira, estava de servegonhisse com o padre.
Francisca ficou ofendida:
__ O quê? Você está doido? Me respeite, que eu sou uma freira, mulher santa e honesta.
__ Sei disso muito bem. __ Adeobaldo estava bem sarcástico.
__ Baldo, você está mesmo com um focinho de rato. __ Disse o padre, bêbado e rindo da situação.
__ Se eu fosse o senhor não ficaria rindo assim não, padre.
Francisca estava séria e tensa:
__ Focinho de rato? Como assim?
__ Francisca, cale tua boca, mulher. Olha só, eu vim aqui tratar de um negócio com o padre, não tem nada a ver contigo, está entendendo? Fica quieta senão enfio esta faca em teu bucho, vice?
Francisca ficou apreensiva e entendeu a seriedade da situação:
__ Calma Baldo, tenha calma. Prometo ficar quieta, homem.
__ Então fica! Sem barulhos. __ Adeobaldo apontou com a faca uma camiseta no chão, que possivelmente seria de Francisca, pois ela estava apenas de sutiã. __ Pega essa camiseta e amarra em um de seus pulsos.
A mulher entendeu de imediato o que era para fazer, mas ficou reticente por algum tempo.
__ Ande, vamos! Não tenho a noite toda.
Ela amarrou um dos pulsos e Adeobaldo terminou de amarrar o outro. Colocou um pano na boca dela e mandou-a sentar em um sofá e ficar quieta. Em seguida, ele pegou os braços do padre, amarrou forte, um contra o outro, pelo antebraço, e colocou, da mesma forma como fez com Francisca, um pano na boca dele, que tanto conversava. Em seguida ele sentou o padre perto da mulher e disse:
__ Padre, Francisca... Prestem atenção. Não quero machucar nenhum de vocês, mas vou precisar arrancar um pouco de sangue do senhor, padre.
Francisca arregalou os olhos. O padre, ébrio, achou que se tratava de uma brincadeira. Estava emitindo alguns barulhos como se quisesse falar, então Baldo tirou o pano da boca dele:
__ Pode arrancar, meu filho, eu deixo.
__ Ótimo, meu padre. Muito obrigado. __ Adeobaldo deu sua explicação para Francisca, e foi retirando as luvas.__ O padre sabe do meu problema Francisca. Fui amaldiçoado um tempo atrás e, pela maldição, eu iria me transformar em um rato. Essa maldição começou a fazer efeito por esses dias. __ Francisca ficava mais assustada quando via as mãos e os pés de Adeobaldo. __ Um ser, que eu não sei quem é, me disse que poderia acabar com essa maldição e me dar poder. Não estou preocupado com o poder, apenas com a maldição. Quero acabar com ela e ter uma vida normal, mas, para isso, ele pediu duas coisas: uma ciroula do padre e um copo com o sangue dele. A ceroula eu já tenho, e agora preciso retirar o sangue. Eu, sinceramente, não queria fazer isso, mas sou obrigado, já que minha esposa precisa de mim, pois está grávida. __ Francisca ouvia atentamente.
Após terminar de falar, Adeobaldo deitou o padre no chão, desamarrou os braços dele, amarrou um no pé do sofá e segurou o outro. Em seguida pegou a faca, mirou o pulso esquerdo e, quando ia dar um talho, foi atrapalhado pela vítima:
__ Baldo, o que está fazendo?
__ Estou tirando um pouquinho de seu sangue, meu padre. O senhor autorizou.
__ Eu?
__ Sim, não se lembra? __ Em seguida, quando o padre ia falar que não se lembrava, fez um talho pequeno no pulso da autoridade. O sangue escarlate do Ministro de Deus começou a jorrar. Ele pegou o recipiente que havia trazido, colocou debaixo do pulso e foi enchendo.
Francisca se agitava, mas tinha receio de tirar o pano da boca e de ser furada por aquele homem que parecia que estava incorporado. Enquanto Adeobaldo fazia seu trabalho, passando as patas de rato pelo pulso do pobre padre, este berrava de dor. Ele resolveu colocar o pano novamente na boca da vítima.
Após terminar sua missão, olhou no relógio. Já estava dando por volta da meia-noite. Ele deixou o padre de lado, desmaiado, bastante pálido, e disse para Francisca:
__ Francisca, me desculpe, mas tenho que ir embora. Não conte nada a ninguém. Diga que o padre tentou se matar, entendeu? __ A voz de Adeobaldo já estava um tanto embolada. Ele sentia os dentes afiados cortando a língua.
Fechou o recipiente, colocou a luva e a touca e, bem devagar, saiu da casa do padre em direção ao cavalo, que o esperava impacientemente. Soltou a corda que prendia o bicho e montou, num pulo. Deu uma esfolada no animal, que disparou em direção à encruzilhada, jogando pedras de cascalho da rua para trás.
Chegando lá, conforme havia sido combinado com o desconhecido, armou, no meio da encruzilhada, a prataria e, sobre ela, a ceroula do padre e um copo com o sangue, ainda quente. Em seguida gritou:
__ Agalharde, aqui está o que foi pedido. A ceroula do padre e o sangue dele. Por favor, me ajude, não me deixe virar um rato.
Quase meia-noite, Adeobaldo ouviu diversas gargalhadas. Olhou de um lado a outro para tentar saber de onde elas vinham, e, de repente, Agalharde apareceu em sua frente, todo sorridente.
Adeobaldo não entendeu qual era o motivo das gargalhadas. Então, o gigante falou:
__ Você é muito ingênuo mesmo, hein.
__ O que houve? Não fiz do jeito que você pediu?
Atrás de Agalharde, outros foram aparecendo, todos com aspectos conhecidos. Colocaram-se ao lado dele:
__ Eu falei que iria gostar de ver a sua derrota, não falei? __ Disse um dos desconhecidos.
Adeobaldo firmou o olhar no dono daquela voz e percebeu de quem era:
__ Mas é você? O que está fazendo aqui?
__ Sempre estive aqui. Todos nós sempre estivemos aqui.
Enquanto Adeobaldo ia conversando com o músico, com quem discutiu na Taberna, o grandalhão foi se transformando no músico mestre daqueles músicos. Adeobaldo ficou extremamente desconcertado. Fora feito de idiota, e agora estava ali, com um enorme problema. Lembrou até da promessa que havia feito para si mesmo, que, se encontrasse o mestre, cortaria o pescoço dele. Arrependeu-se da promessa.
O mestre disse:
__ Nada que você faça irá impedir a maldição de proseguir. Uma vez lançada, nunca mais retorna.
__ Mas eu fiz tudo o que você me pediu. __ Havia uma súplica na voz do homem, que era quase um rato.
__ Fez?
__ Fiz! Tá aqui, o sangue do padre quentinho, e a ceroula dele.
__ E o pedido de perdão que você não fez? Eu fiz isso para te ver aqui, acelerando a maldição. Observe que está dando meia-noite, e você se tornará num rato, e ficará rodando pelo sertão pernambucano até morrer, para nunca mais esbofetear ninguém.
Quando deu meia-noite, Adeobaldo soltou um gemido assustador, que muita gente na cidade jurava ter ouvido, e terminou de se transformar em um rato completo e gigante, com as orelhas afiadas, pelos crespos e duros por todo o corpo e corcunda. Seus dentes, protuberantes, eram visíveis quando ele jogava a língua áspera para fora, lambendo os lábios. Se agachou sobre as duas patas, enquanto os demais músicos se aproximavam. Aquele que havia sido socado por Adeobaldo, agora sorria sinistramente:
__ Bem feito. Por isso que eu disse que a maldição do mestre era melhor do que qualquer revide.
Todos zombaram dele, até que o mestre disse:
__ Vamos, meus músicos. Vamos procurar outra cidade, porque aqui não nos resta mais nada.
A banda foi embora com todos cantando elegremente. Lágrimas escorriam dos olhos daquele rato que, outrora, fora um homem chamado Adeobaldo. Como um rato, ficou perdido pelo sertão pernambucano, se alimentando de alguns outros pequenos roedores.
O padre resistiu à perda de sangue, pois foi salvo por Francisca, que correu, depois que Baldo foi embora, até a casa do médico e pediu ajuda.
Uma diligência foi até a casa de Jurema procurar por Adeobaldo, que ficou conhecido como Baldo, o rato, mas não encontraram ninguém além de Jurema. Grávida, foi levada para a cidade e ficou aos cuidados de Francisca, até o filho nascer. Quando o menino nasceu, ficou rejeitado por todos, pois tinha um narizinho bem achatado e úmido, e umas mãozinhas estranhas. Era a maldição dos músicos.
Adeobaldo sempre teve consciência, até a morte, de todos os acontecimentos. Não morreu de depressão, mas de velhice, e pôde perceber, a distância, seu filho sendo discriminado por ter uma aparência de rato.
No dia de sua morte, em uma região bastante deserta, quando já respirava ofegante e rastejava, o músico mestre apareceu diante dele. Eles trocaram os olhares, e o mestre disse:
__ Lembra-se de mim, Baldo?
O rato balançou a cabeça afirmativamente, bem lento.
__ E então, minha maldição se cumpriu ou não?__ Baldo ficou encarando-o com um olhar de completa derrota e de submissão. __ Vim ver você morrer e pegar o seu perdão, como havia falado.
O músico misterioso levantou uma das mãos, fez alguns cânticos e, assim, o rato tornou-se Adeobaldo. Ele voltou a ser homem, depois de muitos anos, e estava cabeludo, nu, sujo pela terra do sertão pernambucano, em seus últimos minutos.
__ Então, vai pedir perdão?
__ Você é muito poderoso, Agalharde. Aceito isso. __ Sua voz era fraquinha, quase inaudível. __ Porém quero lançar sobre você a minha maldição, a maldição do rato. Meu neto terá muito poder, e acabará com você e seus músicos. Essa é a maldição do rato. E não! Não vou pedir perdão...
Dessa forma Adeobaldo deu o último suspiro e entregou a alma. Durante todo o período que passou como rato, Baldo conheceu muita coisa e se tornou sábio, por isso a maldição que lançou sobre o músico.
Agalharde sentiu que a maldição era autêntica, mas manteve a postura e foi embora, sem o pedido de perdão de Adeobaldo. Estava desapontado por não ter tido aquele homem como um de seus músicos.
O que alguns dizem é que a maldição lançada sobre Adeobaldo foi revertida com o neto dele, que, mesmo tendo nascido como um rato, conseguiu muito poder e se tornou Presidente. Alguns falam que ele se tornou o chefe dos ratos, mas ninguém saberá se isso é verdade, antes de novas histórias.
Estava o senhor Adeobaldo em uma Taberna, tentando beber sua preciosa cachaça, sossegadamente. Como não possuía muitos recursos, devido a uma vida de limitações, toda vez que ia beber, bebia aos poucos, para sentir o gosto da aguardente e saboreá-la lentamente.
Na Taberna estavam alguns músicos, de fora de Pernambuco, que gostavam de viajar tocando em terras estranhas. Era uma banda com um nome bem curioso, algo do tipo “Mágicos do Sertão”. Toda vez que se apresentavam, algo diferente acontecia.
Eles tocavam instrumentos que o Sr. Adeobaldo nunca tinha visto, mas não se importava, pois não possuía nenhuma cultura musical. Laborava o dia inteiro, e, de noite, a única satisfação que lhe enchia a alma era a cachaça. Havia, também, no mesmo recinto, alguns outros trabalhadores bebendo, comendo e ouvindo a música daqueles músicos desconhecidos.
Um dos músicos, após finalizar uma etapa da apresentação, passou um chapéu preto de couro antigo, quase rasgado, diante dos clientes, com a intenção de receber alguma coisa pela apresentação da banda. Todos davam um pouco do que tinham: vinte réis, cem réis, duzentos réis e por aí em diante. Quando chegou diante de Adeobaldo, que estava sentado perto do balcão, disse, educadamente:
__ Boa noite, senhor! Tem gostado de nossa apresentação?
__ Oxente...! Que apresentação? __ O homem não queria muita conversa, e deixou isso claro por meio de seu intemperismo, sua fala agitada e cantada com bastante sotaque pernambucano. Após falar, voltou-se ao copo que lhe chamava.
O músico ficou estarrecido por ter sido ignorado por aquele sujeito, daquele jeito:
__ Como assim, que apresentação?
Adeobaldo virou-se para ele novamente e disse, de forma bruta, como lhe era característico:
__ Homem, olhe aqui... Trabalho de sol a sol, na lavoura. Tenho as mãos calejadas, de tanto capinar e abrir buracos. Ganho meu dinheiro com muito suor para ter que dar para um sujeito como você, que se diz músico e que não faz nada durante o dia. Você acha que sou burro?
O desconhecido não sabia o que dizer, pois jamais esperaria uma ignorância como aquela:
__ Mas, meu senhor, nós também estamos trabalhando. Viajamos muito e treinamos bastante para trazer alguma alegria para todos vocês. __ O músico tentava se defender e defender sua classe.
__ Alegria para mim? Onde já se viu? Você, em algum momento, me viu olhando para onde vocês estavam? Ouvindo o que estão tocando?
__ Não sei, pois são muitos.
__ Muitos o queee, homem...? __ Adeobaldo olhou em volta. __ Quantos fregueses você consegue ver aqui? Uns sete?
O músico começou a contar em voz alta.
__ Por aí.
__ Sujeito, eu não sei ler e nem escrever, mas consigo muito bem dizer a você que aqui não tem nem sete, então faz o favor de sair de perto de mim, senão lhe encho as fuças.
O homem não gostou do desaforo. Sua raiva ficou representada na curva que fez com os lábios, em formato de bico:
__ O senhor é muito desaforado. Se o senhor encher minhas fuças, quem lhe garante que suas fuças também não ficarão cheias?
Adeobaldo levantou-se da cadeira e ficou de pé na frente do homem. Percebeu que o desconhecido era bem menor, ao que lhe disse, estufando o peito e cruzando os braços:
__ Quem vai me encher as fuças? Você? Com esse tamanho todo? Você é quase um anão. __ Adeobaldo agora falava com ironia e soltava alguns risinhos.
A conversa já estava beirando a discussão. Vários outros clientes da Taberna e músicos se aproximaram para saber do que se tratava. O músico explicou a versão dele, sendo apoiado pelos demais companheiros. Adeobaldo tentou explicar a versão que mais lhe convinha, porém fora impedido por alguns outros clientes que já tinham sido vítimas da ignorância daquele ranzinza. Uns viraram as costas para o acontecido, outros falaram ao mesmo tempo que o homem e alguns outros gritavam:
__ Ah! Deixa esse troglodita de lado... Ele é igual a uma topeira velha.
__ Pois bem, vocês não querem ouvir a minha versão, que assim seja. __ A irritação do homem fez com que ele tomasse o restante da cachaça de uma vez só.
Quando parecia que tudo estava terminado, o músico que havia ido pedir uns trocados pela apresentação virou-se para voltar ao palco e deu as costas para o lavrador. Este, como se o bicho tivesse tomado conta de seu corpo, se arrepiou todo e disse para o músico:
__ Espeeeere, homem! Quero lhe dar algo.
Quando o músico se virou para saber do que se tratava, Adeobaldo deu-lhe um soco bem na boca do estômago, o que fez com que o desconhecido caísse no chão sem ar, quase morrendo, sufocado. Houve um reboliço e todos os outros músicos partiram para cima do Adeobaldo, que desafiou um por um. Estava visivelmente alterado:
__ Podem vim todos vocês, seus maricas.
Quando eles iam pular sobre Adeobaldo, um outro músico, mais contido e que se mostrara chefe daquele grupo, gritou lá do palco:
__ Espere! Espere! Não façam isso!__ Ele desceu do palco e foi andando lentamente para perto da confusão. A “multidão” de clientes e músicos foram se abrindo até ele chegar próximo ao agressor. Ficou sondando Adeobaldo por algum instante e, em seguida, disse:
__ Sujeito, perde perdão aos músicos, pois viemos trazer alegria e um pouco de diversão a toda essa cidade maltratada pela fome e pela seca. Não viemos em guerra, mas em paz. Peça perdão, ou senão suas gerações sofrerão severas consequências.
O homem soltou uma enorme gargalhada:
__ Eu, pedir perdão? Para um bando de ratos como vocês? Jamais! Nunca farei isso.
__ Tem certeza de que quer isso? Lhe dou mais uma chance.
O músico parecia um mágico, daqueles antigos. Era bem misterioso em sua fala reservada. Adeobaldo ficou observando-o por alguns segundos, como se quisesse saber qual tipo de ameaça ele poderia lhe fazer e, como não viu nada que o colocasse em risco, disse:
__ Tenho absoluta certeza. Não vou pedir perdão algum. E tem mais, se você quiser, podemos tirar nossas diferenças agora mesmo. __ Adeobaldo foi falando e se posicionando para uma possível luta.
__ Então, tá! Foi você quem quis assim. Desde já eu amaldiçoo você e a sua geração. Se tornará um rato, e como tal viverá.__ Enquanto o músico falava, fazia gestos com as mãos formando sinais, que Adeobaldo jamais iria entender. __ Seus filhos, e os filhos dos seus filhos serão ratos, e você sentirá isso. Morrerá de desgosto, e, quando estiver a morrer, lá eu estarei para pegar o seu perdão.
Os olhos do músico chefe brilharam em um fogo azul, quando finalmente concluiu o seu discurso. Estavam fixos em Adeobaldo. Este sentiu um fiapo de medo quando percebeu aqueles olhos com um brilho estranho, mas não quis comentar. Achou que fosse por causa da cachaça que estava começando a fazer efeito.
__ Vamos embora, meus músicos, pois nesta cidade não há mais o que fazer. Vamos procurar outro ambiente onde sejamos mais bem aceitos.
Todos os músicos se recompuseram, ajeitando suas vestes negras com listras vermelhas nas laterais. O que havia levado o soco levantou-se e disse, com um pequeno sorriso:
__ Melhor do que um soco em você, foi a maldição que o mestre lançou. Terei prazer em ver os ratos saírem de sua prole, seu lixo. __ O músico, após terminar de falar, arrumou suas vestes e foi-se embora, de frente para Adeobaldo, olhando fixo para ele, preparado para qualquer outro golpe covarde.
Os artistas arrumaram suas coisas e foram embora, sob o protesto dos demais clientes, que queriam que eles ficassem:
__ Não vá! Deixe ele de lado! Não merece consideração! __ Disse um cliente, insatisfeito com o término da apresentação, um pouquinho bêbado.
__ E então, Adeobaldo, está satisfeito com o que você fez com o meu estabelecimento? __ Disse Firmino, o dono da Taberna.
__ Eu não fiz nada, Firmino. Estava aqui em meu canto, quieto, e aquele sanguessuga veio me importunar.
__ Veio nada! Veio pedir educadamente, como pediu a todos os demais. Custava você ser educado?
__ Ah! Não enche, homem. Me dê outra cachaça aí da mesma, que vou embora.
__ Vai mesmo! __ Disse o mesmo cliente. Estava ouvindo a conversa e parecia que queria levar uns tapas. __ E não volte mais, seu bruto.
Adeobaldo, sem dar atenção ao que lhe foi falado, pegou a cachaça que Firmino havia colocado, virou novamente, de uma única vez, fez caretas, pagou a conta e saiu, sem se despedir. Não tinha consideração alguma de ninguém que ali estava, e, se na vida tivesse consideração de uns cinco homens, era muito.
Na ida para casa, todo o trajeto foi feito a pé, pois não quis subir ao cavalo. Não havia luzes ao longo da estrada de terra cheia de cascalhos vermelhos. A lua cheia deixava a região levemente iluminada, acentuando algumas sombras de árvores tortas do sertão pernambucano. Passou por diversas encruzilhadas e ruas desertas, encontrando um ou outro conhecido. Ao chegar a um cruzamento, que era bastante conhecido por ser ponto de despacho, observou uma figura imponente com os braços cruzados, em um dos cantos da rua. Olhava fixamente para frente e parecia que estava esperando-o. Tinha mais de três metros de altura e era bastante forte. Adeobaldo tentou passar de lado, fingindo para si que não estava vendo nada e que estava sob o efeito da cachaça, mas não teve jeito. O ser misterioso lhe disse:
__ Você pode até fingir que não está me vendo, mas sei que está.
Adeobaldo parou, agora com medo, já que o outro era bem maior do que ele e possuía uma voz assustadora. Olhou-o vagarosamente e disse, com respeito:
__ Quem é você?
__ A pergunta não é essa.
__ E qual a pergunta?
__ Você saberá fazer. Foi amaldiçoado, sabe disso?
Adeobaldo, a princípio, não se recordou da maldição lançada sobre ele, mas, depois de alguns segundos, entendeu do que ele estava falando.
__ Como você sabe disso? Esteve por lá?
__ Estou em todo canto. Não teve medo? Confessa!
__ Não tenho medo de nada. __ Já estava mais confiante, entretanto, ainda assim, mantinha o respeito.
__ Sei que está com medo de mim. Não precisa, mas...__ Adeobaldo concordou apenas consigo e continuou ouvindo o que o ser tinha para falar. __ Daquele outro, deveria, porque o que lhe foi lançado é real.
Adeobaldo quis acreditar no que o desconhecido falava, então perguntou:
__ E como faço para acabar com aquela maldição?
__ Eu consigo acabar com ela.
__ Como?
__ Eu consigo acabar com ela e lhe dar algo que tanto almeja. __ O sujeito não ia direto ao ponto.
Adeobaldo tentou fazer um teste:
__ E o que eu tanto almejo?
__ Poder!
Após o desconhecido falar o que ele exatamente queria, Adeobaldo ficou animado, e então concluiu que ele estava falando a verdade.
__ Mas como consigo tudo isso?
__ Primeiro você precisa querer.
Sem pensar duas vezes ele disse:
__ Eu quero.
__ Ótimo! Agora você precisa me trazer duas coisas, muito peculiares, em um prato de prata. Você traz e coloca no meio desta encruzilhada, numa meia-noite, que assim acabarei com a maldição e lhe darei poder.
Adeobaldo pensou que ele estivesse se referindo à cachaça, a frango preto e a farofa. Achou fácil e concluiu:
__ Para quando você quer o despacho?
__ Despacho? Eu disse algo sobre despacho?
O homem agora estava apreensivo e engoliu seco, por já ter ouvido diversas conversas de que o capiroto... Sim! O capiroto! Ele já havia entendido que não era nenhum anjo que estava em sua frente. Então, já ouvira diversas conversas nas quais o capiroto pedira a alma quando oferecia algo do tipo. Mesmo assim ousou perguntar:
__ Mas, então... o que você quer?
__ Agora, sim, a pergunta correta. Quero uma ceroula do padre da cidade e um copo com o sangue dele.
Sobre o pedido, ele achou muito estranho, mas achou por bem não perguntar o motivo daquele desconhecido querer a cueca do padre. Pegar a ceroula era até fácil demais. Agora, conseguir o sangue do padre, coisa bastante difícil. Ficou extremamente espantado:
__ Bom, sobre trazer a ceroula, eu até consigo, agora, trazer o sangue do padre, meio complicado, hein.
__ Você sabe como proceder. Não aceito outro sangue. Não aceito que me engane. Sei de todos os seus passos.
Adeobaldo colocou as mãos no bolso tentando pensar, e o que melhor lhe veio à mente foi rejeitar tudo aquilo, e acreditar na possibilidade de que a praga do músico não iria vingar, ou que seria apenas uma farsa.
__ Homem, vamos deixar isso quieto, porque não vou conseguir trazer o sangue do padre.
__ Você é quem decide. Se quiser, já sabe; a ceroula e um copo com o sangue dele. Deixe tudo numa prataria ali, __ Ele apontava com um dedo. __ no meio da encruzilhada, à meia-noite de uma sexta-feira qualquer, e diga; “Aqui está a oferta, Agalharde. Não me deixe virar um rato.” Lembre-se de que a maldição foi lançada, e que a cada dia você sentirá os efeitos se intensificando. Chegará um dia que tudo acontecerá de uma única vez. Agora segue seu caminho, que vou seguir o meu. Tenho outros compromissos.
Agalharde colocou as mãos sobre os ombros, cruzando os braços. Fez uma saudação, inclinando o tronco para frente e, como num estalar de dedos, desapareceu. Adeobaldo ficou intrigado e achou que tudo aquilo era uma grande ilusão proveniente de sua cachaça. Pensou ele; “Aquele miserável do Firmino colocou alguma coisa em minha bebida”, e então resolveu seguir o caminho de casa.
Passados alguns dias daquele encontro, Adeobaldo já não mais se lembrava do ocorrido. Em sua cabeça tudo não passou de um momento de embriaguez, pelo cipó forte que havia tomado na Taberna. E assim foi levando sua vida tranquilamente. Depois de alguns anos, arrumou até uma namorada, que se tornou sua esposa alguns meses depois, e isso sepultou de vez o encontro que teve, pois vivia em uma alegria constante. As coisas começaram a mudar, ou desandar, depois que estava casado e sua esposa já estava grávida de sete meses. Aos poucos foi sentindo a mudança.
Numa manhã, após ser despertado pelo canto do galo, quando foi calçar a bota, para ir à lavoura, notou que estava apertada demais, que não entrava em seu pé. Como estava muito cedo e escuro ainda, foi até uma lamparina que se encontrava na cozinha, apenas calçado com a meia. Carregava a bota na mão. Colocou o pé sobre uma cadeira, tirou a meia, aproximou a lamparina e qual não foi o seu espanto quando percebeu um pé achatado, com os dedinhos magros, compridos e com unhas afinadas. Seu pé estava bastante rosa, e havia pequenos cabelos crespos e duros, como se fosse de um roedor, até próximo da metade da canela. Deu um grito de horror, o que fez acordar sua esposa. Deixou a lamparina cair e tratou de tirar a meia do outro pé para saber se estava do mesmo jeito. Sua surpresa ficou completa quando percebeu a mesma coisa. Jurema chegou espantada pelo grito, ajeitando a camisola:
__ O que foi, homem, alguma cobra te picou?
Adeobaldo, assustado, tentou se esconder atrás da mesa e disse:
__ Não foi nada, mulher.__ Passou as mãos pelo rosto para tentar descobrir se havia mais alguma coisa diferente. Nada encontrou.
Correu até o quarto para se ver em um espelho bastante velho e confirmar o que suas mãos lhe indicaram. Sua esposa o acompanhou:
__ Mas homem, você está ficando doido, é?
Como ainda estava no escuro do fim da madrugada, ela não percebeu os pés diferentes. Ele ficou se olhando no espelho, segurando uma outra lamparina, de lado, procurando algo que ainda não existia. Passou a mão enfurecida diversas vezes pelas orelhas, pelas sombrancelhas, pelos cabelos e, para o seu alívio, não encontrou nada diferente. Então disse para sua esposa, tentando espantar o susto:
__ Foi apenas um pesadelo. Vai dormir, mulher, que eu vou trabalhar, visse?
Sua mulher obedeceu e voltou a se deitar, sem antes murmurar:
__ Homem doido! Se bem que me avisaram.
Adeobaldo não deu importância para o que ela disse, pois estava bastante preocupado com a mudança de seus pés.
Percebeu que Jurema foi se deitar, olhando por cima do ombro. Voltou para a cozinha, pegou a lamparina que havia caído no chão e observou mais atentamente os seus pés, para não ter dúvidas do que tinha visto:
__ Cruz em credo... Isso é maldição daquele músico. Estou virando um rato de verdade. Valha-me Deus!
Adeobaldo ficou extremamente assustado com tal constatação. Tentou esconder os pés com as meias e amarrou outros panos em volta, para protegê-los, já que nenhuma bota servia. Aquilo acabou com o seu dia que estava apenas começando, às cinco da manhã. Não conseguiu trabalhar direito, pois pensava o tempo todo a respeito.
Após terminar o trabalho que foi executar no campo, com muita dificuldade, porque não conseguia se concentrar, pensou em ir falar com o padre, se confessar, pedir perdão pelos pecados, ou seja lá o que fosse, para acabar com aquela maldição. Sua esposa já havia se levantado e feito o café-da-manhã, quando ele chegou, por volta das oito horas, após sua primeira jornada de trabalho. Viu o que Adeobaldo havia colocado nos pés e foi logo perguntando:
__ Mas, homem, o que é isso nos pés?
__ É um pano velho, porque a bota não serve mais.
__ Mas essas botas são tão novas. __ O comentário da esposa foi apenas para não ficar calada, enquanto se servia de café.
__ Mulher! Você é surda? Eu disse que não serve mais.
__ Hoje você tá atacado, hein. Eita homem bruto!
Adeobaldo se chegou à mesa, puxou uma cadeira e sentou, para fazer seu desjejum. Estava com cara de poucos amigos.
__ Vou ter que sair. Vou à cidade.
__ Posso ir contigo? Tenho que comprar algumas coisas.
O homem pensou rápido e disse:
__ Pode.
__ Mas, onde você vai?
__ Vou na igreja. Preciso conversar com o padre.
A esposa ficou surpresa:
__ Conversar com o padre? Mas você nunca conversa com o padre! O pesadelo foi grande mesmo, hein.
__ Jurema, você não está vendo que estou de mau humor? Não quero conversar. Me deixa quieto.
__ Acho que você está de mau humor todos os dias.
__ E por que você se casou comigo?
__ O amor não se importa com essas coisas.
O homem teve que se calar, pois entendeu que, talvez, a única pessoa que o amasse fosse aquela mulher, já que seus pais já não mais existiam, e porque possuía diversos inimigos.
__ Tá! Termina de comer, se arruma e vamos embora. Vou preparar a carroça.
Ao terminaram de tomar o café da manhã, Jurema se arrumou, enquanto Adeobaldo aprontou a carroça. Eles saíram e, no percurso, não houve muita conversa. A mulher achou bastante estranho aqueles panos nos pés de seu esposo, mas, como ele estava todo estranho, desde a madrugada, preferiu não comentar nada, e assim seguiram viagem.
Após quase duas horas andando por estradas tortas e mal conservadas, eles chegaram à cidade. Adeobaldo deixou Jurema em uma loja de tecidos e disse que passaria por lá para buscá-la, em uma hora, mais ou menos. Em seguida, antes de se dirigir à casa do padre, ele passou numa loja de calçados de roça e comprou uma bota que cabia perfeitamente em seus enormes pés. Experimentou o novo calçado longe dos demais clientes. Sentiu-se mais confortável, pagou e, sem pestanejar, rumou para a casa do padre.
Chegando lá, percebeu que estava tudo fechado. Gritou:
__ Padre! Ó seu padre! Padre Marcelo...!
O padre Marcelo era um sujeito engraçado: baixinho, gordinho e quase não se via o pescoço. Possuía cabelo branco, grande e ralo, um nariz achatado e enormes olhos caídos pela idade. Ele saiu da casa, para cumprimentar o visitante, com cara de quem estava dormindo.
__ Adeobaldo... Que milagre você por aqui? Entre!
Adeobaldo deixou a carroça estacionada na frente da igreja, no lugar apropriado, e entrou.
__ Mas me diga, homem, o que lhe traz aqui a essa hora?
__ Padre, preciso muito de sua ajuda.
__ Meu filho... eu estou aqui para ajudar. __ A voz do padre era mansa e arrastada. __ Me diga, como posso te ajudar?
Adeobaldo coçou a garganta e olhou em volta meio constrangido. Não sabia como começar:
__ Padre, eu... fui amaldiçoado um tempo atrás por um músico. __ O padre prestava bastante atenção, enquanto servia café para os dois. __ Eu não acreditei, mas hoje veio a confirmação da maldição. O senhor precisa me ajudar a acabar com a praga.
O padre Marcelo estava desconfiado da situação:
__ Mas, meu filho, qual foi a maldição?
__ Eu briguei na Taberna do Firmino com um músico, aí veio outro e me amoldiçoou. Disse que eu iria virar um rato.
O padre sorriu ironicamente. Adeobaldo não gostou, pois estava bastante sério:
__ Virar um rato, é?
__ Pois é padre, a coisa é séria. Eu gostaria que o senhor não sorrisse da minha desgraça.
__ Desculpe, meu filho, não estou sorrindo de zombaria... Mas me diga, como você sabe que a maldição está surtindo efeito?
__ Tenho como provar. Meus pés estão diferentes.
__ Então prove. Mostre-os!
Adeobaldo foi obrigado a mostrar ao padre a forma concreta da maldição. Ele novamente coçou a garganta, olhou em volta, como se estivesse investigando se havia alguém por perto, e disse:
__ Mas padre, o senhor precisa me prometer que não vai contar a ninguém.
__ Meu filho. Tudo o que se passa por aqui, eu mantenho segredo. Pode confiar em mim, que não vou contar nada.
__ Então tá.
Adeobaldo levantou as pernas das calças, lentamente, e foi retirando as botas. O padre, como não estava acreditando no que ele estava dizendo, terminou seu café e disse que iria ao banheiro e que voltaria em um minuto. Foi o tempo de Adeobaldo retirar as botas e as meias.
Quando o padre voltou para a sala, o visitante estava com os pés por sobre uma mesa de centro, para deixar visível a ele o que queria mostrar. O religioso chegou à sala e viu aqueles dois pés em formato de pés de ratos. Soltou um grito escandaloso que pôde ser ouvido lá da rua.
__ Ave maria, Cruz em credo... Vade retro, Satanás!
Tentou buscar todos os credos, por tamanho susto que passou.
__ Calma, padre! Calma! Sou eu, Adeobaldo. Preciso de sua ajuda. __ Disse o homem, levantando-se e indo acudir o padre.
Algumas pessoas que passavam pela rua naquele momento, em frente à casa, ouviram os gritos e entraram correndo para saber o que estava acontecendo. Adeobaldo teve tempo de esconder os pés, enfiando-os nas botas, pois entraram gritando pelo padre, que rapidamente dispensou-os, para analisar melhor a situação do homem com pés de rato. Em seguida, mais contido, disse para Adeobaldo, sentando-se:
__ Meu filho, essa maldição veio do inimigo vermelho, sabe qual que é, não é mesmo?
__ Sei sim, padre, por isso preciso de sua ajuda.
O padre esforçou-se para se concentrar. Fez caretas, pensou alto e andou pela sala, sendo acompanhado pelo olhar de Adeobaldo. Em seguida pediu:
__ Deixa eu ver isso novamente.
Adeobaldo mostrou a ele. O padre pegou na ponta de um dos dedos, com uma expressão de nojo:
__ Isso dói?
__ Dói não.
__ Sente tudo normal?
__ Absolutamente.
__ Jurema sabe disso?
__ Sabe não.
__ Melhor contar a ela, não acha? Porque você vai precisar do apoio dela.
__ Achei melhor vim conversar com o senhor primeiro. Já viu algo assim?
__ Assim não, mas já ouvi alguns relatos a respeito.
__ E o que eu faço, meu padre, me ajude. __ Adeobaldo agora demonstrava desespero.
O que mais o preocupava era que, como o músico disse que ele iria se tornar um rato, então pensava que os pés seriam apenas o começo. Imaginava como seria quando o rosto começasse a se transformar, o que seria muito pior. Iria ter que morar sozinho no sertão, se alimentando como um roedor, e iria ficar longe de Jurema e de seu filho que estava por nascer.
Após muito pensar, o padre disse:
__ Meu filho, vou te dar um litro de água benta para você passar por todo seu corpo quando for dormir. Deverá rezar cem ave-marias e cem pai-nossos. Se precisar de ajuda pode me procurar a qualquer hora.
O padre preparou a água benta, alguns objetos religiosos e mais uma infinidade de conselhos para Adeobaldo, que já havia colocado as meias e as botinas. Quando o coitado do lavrador foi embora, o padre ficou mais aliviado, e disse consigo mesmo:
__ Ufa! Graças a São Benedito que esse homem foi embora. Que aberração da natureza!
Adeobaldo voltou, conforme combinado com Jurema, à casa de tecidos para buscá-la. Ambos rumaram para casa. Quando eles estavam passando pela encruzilhada, onde o lavrador havia encontrado Agalharde, lembrou-se da conversa que teve com ele e pensou em procurá-lo, caso a simpatia do padre não surtisse efeito. Estava triste por não ter acreditado na maldição. Resignado, ficou calado o dia inteiro e nem a botina tirou, mesmo estando em casa. A mulher, já conhecedora da esquisitice de seu marido, não o pertubou e assim ficou quietinha no canto dela.
À noite, Adeobaldo fez conforme o padre havia lhe ordenado, tomou banho, passou água benta em todo o corpo, procurou um cantinho em sua casa para rezar e disse à mulher que não queria ser incomodado. Começou a rezar suas cem ave-marias e seus cem pai-nossos acreditando que fosse dar certo. Ao dormir, a esposa, que já estava adormecida, despertou e perguntou, receosa, porque ele estava rezando, já que nunca o havia visto rezar. Ele disse que não era nada, que estava com muito sono e que queria dormir. Adormeceu em seguida, crente que o ritual que praticou havia resolvido sua situação.
Quando acordou, a primeira coisa que fez, ao se levantar e ir à cozinha, foi ver se os pés haviam voltado ao normal. O desespero bateu-lhe novamente quando conseguiu visualizar que, ao invés de o problema ter sido resolvido, acentuou-se, pois agora eram as mãos que haviam se transformado em mãos de rato. Sentiu-se angustiado, choroso e perdido. Sua mulher, ouvindo os barulhos estranhos, acordou e ficou espiando atrás da porta. Adeobaldo estava inconsolável. Andava de um lado para o outro, olhava as mãos e, em seguida, os pés, chorava e lastimava. Batia com as mãos na cabeça, se ajoelhava e outras coisas mais. Ele disse em voz alta:
__ Padre! O senhor precisa me ajudar. Não conheço mais ninguém.
Então virou-se para ir ao quarto. Sua esposa percebeu e voltou, em passos rápidos. Fingiu que estava dormindo. Sua barriga de sete meses não a atrapalhava.
Adeobaldo entrou no recinto, procurou e pegou uma luva de vaqueiro que estava sobre o guarda-roupa, se arrumou e saiu. Jurema levantou-se quando percebeu que ele tinha saído de casa, foi até a janela e ficou espiando Adeobaldo ajeitar o cavalo, pular sobre ele e correr em disparada. Sabia que ele estava indo visitar o padre, por causa de algo bastante sério, mas não imaginava o motivo. Ficou muito preocupada e começou a chorar.
Adeobaldo chegou à cidade em trinta minutos, tamanha rapidez que impôs ao cavalo. Aproximando-se da casa do padre, amarrou o cavalo no devido lugar, do outro lado da rua, olhou de um lado a outro, para ver se vinha alguém, e foi andando lentamente em direção à casa. Como não viu ninguém, entrou sorrateiramente no quintal da igreja. Foi até a janela do quarto do padre e bateu, chamando-o, sussurando, para não acordar os vizinhos:
__ Padre! Padre Marcelo, acorde, estou desesperado, meu padre. Sou eu!
O padre abriu uma pequena fresta e, olhando, perguntou quem era:
__ Quem é que ousa perturbar o sono do ministro do senhor a essa hora da madrugada, sendo que o sol nem nasceu ainda?
Adeobaldo desconfiou de que o padre estava bêbado:
__ Padre, o senhor bebeu? Sou eu, Adeobaldo.
__ Meu filho. Entre! Entre! __ O padre foi abrir a porta da sala, ainda de ceroulas. __ Eu não estou bêbado, meu filho, quer dizer, apenas bêbado de sono.
O quase rato observou uma garrafa de vinho sobre a mesa e dois copos sujos, mas não quis comentar nada:
__ Padre, a coisa piorou.
__ Por quê? A água benta não surtiu efeito?
__ Deu efeito não, padre. E agora, olha só! __ Adeobaldo tirou as luvas e mostrou as mãos. __ Estou me transformando em um rato, padre.
__ Meu filho, eu fiz o que era pra fazer. Vamos ter que chamar o bispo para resolver essa sua situação, porque a tendência é só piorar.
Adeobaldo percebeu que seria inútil continuar a conversa com aquele padre, que estava bêbado e que, ainda por cima, estava com companhia, o que sugeria que ele havia feito sexo, pois roupas estavam jogadas pela sala, o que é proibido aos ministros da Igreja. E pior, não sabia se era masculina ou feminina.
__ Mas, padre, até o bispo chegar aqui eu já virei um rato por completo.
__ Pois é, meu filho, mas temos que esperar. Enquanto isso, continue rezando o que eu te falei. Quando ele chegar, eu mando te chamar. Agora você precisa ir, porque eu tenho que descansar. Logo mais terei que visitar alguns fiéis.
O padre praticamente enxotou Adeobaldo e fechou-lhe a porta. O lavrador ficou furioso e pensou até em arrebentá-la, arrebentar a cara do padre e, quem sabe, talvez, o machinho dele. Mas, de repente, uma memória lhe sobreveio: “Eu posso resolver isso... basta a ceroula do padre e o sangue dele num copo.” Esperou um pouco, até que o padre estivesse, talvez, dormindo, foi até o tanque e começou a revirar um monte de roupas sujas. Encontrou uma ceroula branca, com uma listra suja enorme, e deduziu que fosse a do ministro da igreja. Falava consigo mesmo:
__ Miserável, você vai me pagar, seu padreco safado. __ Guardou a ceroula dentro de um dos bolsos da calça.
Ajeitou o chapéu de couro cru, abriu o portão da igreja bem devagar para não fazer barulho e não ser reconhecido, andou até o animal e pulou sobre ele, em um impulso. Bateu as esporas, o que o fez sair em disparada.
Aquele dia foi igual ao dia anterior: triste. Jurema, volta e meia, perguntava o que estava acontecendo, quando ele chegava à casa, mas ele sempre mudava de assunto. Já não estava ignorante com ela, como antes, pois se colocava como culpado. Pensava: e se seu filho nascesse como um rato? Isso o deixava com a consciência pesada e abatido, pois amava Jurema. Ficou o dia inteiro de luvas e botas, até de noite.
Quando estava bem escuro, quase meia-noite, disse para Jurema que estava indo para a Taberna do Firmino. Foi direto para a encruzilhada, pois queria encontrar Agalharde. Chegando lá, amarrou o animal em uma cerca, ficou no meio da encruzilhada e gritou:
__ Ei! Quero falar contigo. É sobre aquele trato.
Gritava aos ventos, porque não havia ninguém, e nenhum morador passava pelo local. Gritou mais alto.
__ Ei! Aparece! __ Não chamava Agalharde pelo nome porque não se lembrava.
De repente, Agalharde apareceu atrás dele, o que lhe deu um enorme susto:
__ Rato... Você estava me chamando?
Adeobaldo se arrepiou todo com a menção do nome rato. Tentou manter a calma:
__ Sim, estava. Mas não lembrava o seu nome.
__ Agalharde. __ O desconhecido apresentou-se novamente. __ Diga, o que queres?
__ Não quero ser um rato.
__ Mas já és. Olhe suas mãos e pés, o padre não resolveu?
__ Aquele padre é um bêbado. Nunca vai me ajudar. __ Agalharde deu um riso sombrio.
__ Eu sempre soube disso.
Adeobaldo contemplou, por um momento, o sorriso zombeteiro de Agalharde e, em seguida, perguntou:
__ A proposta, ainda está de pé?
__ Sempre. __ O comportamento do gigante era de um completo desinteresse.
__ Então eu vou fazer. Já peguei a ceroula. __ Ele tirou a peça íntima do padre, de dentro do bolso da calça e a mostrou.
__ Eu disse que deveria ser a ceroula e um copo de sangue. Trouxe uma parte, e a outra?
__ Eu vou conseguir. Primeiro eu precisava saber se o trato ainda estava de pé, porque, para trazer o sangue do padre, vou ter que usar de ignorância.
__ Que assim seja. Era só isso?
__ Só!
__ Então vou embora.
__ E quando pode ser?
__ Você tem pressa?
__ Muita!
__ Pode ser amanhã. Será uma boa noite, já que teremos lua cheia.
__ Meia-noite, não é mesmo?
__ Isso. E sabe como me chamar pelo nome, não é?
__ Eu gravei. É Agalharde.
__ Correto. Te aguardo e venha sozinho, senão nada vai funcionar. Vou embora.
Agalharde, fazendo o mesmo cumprimento da primeira vez, num piscar de olhos, desapareceu. Adeobaldo, sentindo alí um fio de esperança, pegou seu cavalo e, caminhando, voltou para casa. Pensou até mesmo em dar um ida na Taberna do Firmino, mas sentia vergonha. Por causa da ignorância dele, estava daquele jeito. Resolveu voltar a pé mesmo, puxando o animal pela corda, para ter mais tempo para pensar. Precisava arquitetar como faria para conseguir o sangue do padre. A primeira coisa que pensou foi no prato de prata. Tinha um, herança de sua avó. Iria usá-lo. Chegou a casa, sua esposa já estava dormindo. Trocou-se e foi dormir, satisfeito por saber como iria resolver tudo aquilo, mesmo sabendo que, logo, logo, teria mais alguma coisa de rato em si.
No dia seguinte acordou, sempre com o canto do galo, mais aliviado, porque tinha certeza de que iria resolver tudo. Foi até a cozinha, curioso para saber o que havia aparecido, dessa vez. Sua curiosidade não era alegre. Era tensa. Olhou os pés e as mãos, estavam da mesma forma. Tateou o rosto e percebeu que o nariz havia diminuído e estava, agora, quase achatado, com apenas dois furinhos e com a pontinha úmida. Percebeu bigodes finos e duros saindo de sua face, como bigodes de ratos. Não se assustou, porque tinha plena convicção de que aquele dia seria o último dia em que ele estaria com vestígios de ratos.
Saiu mais cedo do que de costume de casa, para que sua esposa não o visse daquele jeito. Pegou uma touca velha e foi para a roça. Por lá ficou até por volta do meio-dia. Não aguentando mais o sol escaldante do sertão, e como aquela terra era bastante seca e quase não havia árvores frondosas para descansar sob elas, uma alternativa era se refrescar um pouco em casa.
Quando chegou, teve que enfrentar a fúria de Jurema, pois ela já estava cansada daquelas esquisitices, que apareceram de um dia para o outro. Ele ainda estava usando a touca. Apenas os olhos ficaram descobertos:
__ Adeobaldo, preste atenção. Eu te amo muito, mas não vou tolerar mais essa sua esquisitice. O que está acontecendo?__ Adeobaldo não queria falar sobre o assunto. __ Olha só para você. Não tira essas botas e nem essas luvas, e agora essa touca na cabeça, o que está acontecendo? Exijo saber de tudo, pois sou sua esposa.
Jurema possuía muita fibra. Era muito aguerrida e, quando desconfiava de algo, ia até o fim, até saber tudo:
__ Não quero falar sobre isso, mulher.
__ Mas eu quero. __ Ela foi em direção a ele com o intuito de retirar a touca. Ele se desvencilhou dela. __ Olha isso. Tira isso quando eu falo contigo.
Adeobaldo respondeu de forma brusca, quando escorregou para o lado:
__ Não mexa em minha touca.
Jurema não conteve o choro:
__ Você está ficando louco, Baldo?__ Ela o chamava de Baldo quando estava carente e chorosa. __ Não me ama mais?
Mesmo sendo um sujeito bastante rude, Adeobaldo a amava de verdade, e vê-la sofrendo daquele jeito, sobretudo grávida, afetou-lhe a alma e teve vontade de falar toda a verdade:
__ Eu não posso te contar.
__ E por que não? Sou sua esposa. Deixe-me te ajudar.
Adeobaldo sentiu um nó na gargante e uma pequena lágrima escorrer, que foi absorvida pelo pano cru da touca, quando percebeu que sua esposa estava, realmente, sofrendo. Resolveu se abrir com ela.
Sentou numa cadeira, ainda na varanda, e disse:
__ Foi uma maldição.
Ela conteve o choro, lentamente e, limpando as lágrimas, recomeçou o diálogo.
__ Maldição? Como assim?
__ Antes de eu te conhecer, um sujeito me lançou uma maldição. Eu não acreditei, e agora a maldição começou a fazer efeito.
__ Como assim?
__ Ele disse que eu iria me transformar num rato, eu e meus herdeiros. Foi numa briga lá na Taberna do Firmino.
Jurema virou o nariz à menção da Taberna, pois não gostava do lugar, e resolveu deixar isso claro.
__ Nunca gostei daquele lugar.
__ Eu não voltei lá mais, porém aconteceu, e agora estou aqui, me transformando em um rato. Meus pés, minhas mãos e meu nariz já se transformaram.
Ela estava incrédula com a declaração de seu esposo. Quis confirmação:
__ Deixa eu ver.
__ Você está grávida. Não pode se assustar vendo essas coisas.
Ela colocou-se diante dele, convicta de sua vontade:
__ Quero ver, definitivamente. Se isso é verdade, não vai atingir somente a você, vai me atingir, e a meus filhos também.
Adeobaldo ficou pensativo por um momento e, lentamente, foi se desfazendo de seus aparatos. Primeiro as botas, depois as luvas e, por último a touca. Jurema estava ficando perplexa com tudo aquilo, à medida que ele ia se mostrando. Sua cor sumiu e disse que precisava de água. Adeobaldo foi até o filtro de barro e, com dificuldade, conseguiu pegar a água em um copo:
__ Meu deus... Como isso aconteceu?
__ Não sei! Simplesmente aconteceu.
__ E agora?
__ Naquela mesma ocasião, quando eu estava vindo embora, um sujeito me apareceu dizendo que poderia acabar com a maldição, mas, para isso, ele iria precisar de duas coisas absurdas.
__ Quem é esse sujeito? O que ele quis?
__ Não sei quem é.
__ Deve ser o bicho. O que ele quis? __ Jurema agora estava sentada, porém trêmula.
__ Ele pediu a ceroula do padre e um copo com o sangue dele, tudo em uma tigela de prata.
__ Creio em Deus pai.... Ave maria! Por isso você foi até o padre? Pegar o sangue dele? __ Jurema ficou espantada.
__ Não! Claro que não... Eu fui até o padre pedir ajuda, mas percebi que ele jamais iria me ajudar, pois além de ser um bêbado, ainda faz sexo.
__ Como você sabe disso?
__ Eu fui ontem lá onde ele mora, cedinho, e vi dois copos sujos de vinho.
Jurema estava desapontada, já que era uma fiel assídua da igreja.
__ E como sabe que estava com alguém?
__ Porque tinha roupas pela sala.
__ Xiiii... E agora?
__ E agora vou fazer o que aquele sujeito pediu. Já peguei até uma ceroula do padre, só falta um copo com o sangue dele.
__ Ave maria! __ Jurema se benzeu de novo e ficou toda arrepiada. __ Você vai matar o padre?
__ Claro que não! Só vou pedir um pouco do sangue dele.
__ Mas ele não vai querer te dar.
__ Aí eu pego na marra. __ Adeobaldo mostrou uma faca bem afiada. __ De um jeito ou de outro eu saio de lá com um copo de sangue daquele padre.
__ Mas Baldo, isso é pecado, e você poderá ser preso.
__ Preso? Neste fim de mundo? Jamais...
A bem da verdade, o lugarejo era mesmo um fim de mundo. Havia apenas uns dois policiais que trabalhavam por lá: hora estavam dormindo, hora jogando baralho, hora bebendo. Estavam longe de cumprir com as obrigações dos homens da Lei.
Jurema ficou apreensiva durante todo o dia. Era só lembrar da situação, que começava a chorar. Adeobaldo chegava perto e colocava o focinho úmido no pescoço dela tentando acalmá-la, mas não resolvia. Piorava a situação. Ela sentia repugnância. Ele passava a pata por sobre o seu filho, e o bebê começava a chutar, como se estivesse entendendo a situação. A mãe olhava as patas de rato, fechava os olhos, e voltava a chorar.
Quando a noite chegou, por volta das vinte horas, Adeobaldo se arrumou, colou as botinas, as luvas e, por último, a touca. Jurema foi se despedir dele na saída:
__ Mulher, hoje eu resolvo tudo isso. Amanhã estaremos em paz. Assim, teremos o nosso filho com muita saúde.
Jurema estava bastante triste e pensativa. Tinha absoluta certeza de que Adeobaldo iria matar o padre. Porém, lá no fundo, sentia esperança de ele ficar bom:
__ Baldo, não mate o pobre do padre. É pecado homem.
Adeobaldo terminava de se arrumar, enquanto respondia:
__ Não se preocupe, minha querida, não vou matá-lo. Preciso apenas de um pouco do sangue dele.
__ E se for mentira daquele homem?
__ Aí vou me tornar um rato para o resto de minha vida. Infelizmente vou ter que te abandonar, e se isso acontecer, quero que você viva a sua vida e cuide de nosso filho como se eu tivesse morrido.
__ Por quê? Vai me abandonar?
__ Como vou ficar contigo, Jurema, sendo um rato? Não tem como.
__ Daremos um jeito. Eu cuido de você.
__ Nem pensar, mas não se preocupe. Vá para dentro, feche as portas e me espere voltar.
__ Vou te esperar.
Adeobaldo sentiu vontade de dizer que a amava, mas não conseguiu. Ficou olhando-a chorar, e seus olhos se encheram de lágrimas, novamente. Encostou os dedos, ou melhor, as patas, nos lábios e, em seguida, tocou nos lábios dela, e fez uma carícia na barriga. O bebê estava quietinho.
Em seguida, subiu ao cavalo, que havia selado, deu esporadas na barriga do bicho e foi embora. Jurema ficou observando-o sumir na escuridão, em seguida entrou em casa, fechou tudo, e foi rezar, pedindo ajuda a todos os santos.
No caminho, Adeobaldo sentiu uma mistura de sentimentos, principalmente raiva e arrependimento. Jurava que, se algum dia tivesse a oportunidade de encontrar aquele maldito músico novamente, iria cortar o pescoço dele.
Encaminhou-se para a cidade, quando já estava tudo quieto, com a intenção de pegar um pouco de sangue do padre. Dizia ele pelo caminho, em voz alta:
__ Mas padre, é apenas um pouquinho de sangue. Não vai doer...
Falando assim, ele tentava se convencer de que era para o bem a retirada do sangue do padre beberrão.
Quando chegou perto da casa do ministro da Igreja, deixou o cavalo a uma certa distância, observou se alguém passava por perto e, como não via ninguém, foi andando, junto às cercas tortas, bem devagar, e sem levantar suspeitas, em direção à casa do padre. Estava armado com uma faca bastante amolada e de um recipiente onde iria guardar o sangue.
Na entrada da casa, olhou para todos os lados, e até mesmo para cima, para certificar-se de que não havia ninguém àquela hora. Entrou suavemente, sem fazer barulhos. Percebeu que a luz da casa do padre Marcelo ainda estava acesa, e pôde ouvir algumas gargalhadas. Conseguiu identificar três vozes lá dentro. Uma delas – possivelmente a do padre – estava contando uma piada bem debochada. Era cheia de palavrões. A outra voz era feminina, e a terceira voz masculina. Adeobaldo disse baixinho:
__ Miserável! É padre... se eu tinha algum receio em arrancar teu sangue, agora não tenho nenhum. Minha consciência ficará bem tranquila.
Ele esperou, encostado em uma parede escura, aos fundos do quintal, que os donos das vozes estranhas fossem embora. Ficou nervoso porque estava demorando, e eles não iam embora, até que a porta se abriu, um conhecido saiu e, despedindo-se do padre, foi embora.
A dona da outra voz continuou lá dentro. Baldo se aproximou da janela e, vendo só com um olho o que se passava, percebeu que a mulher não iria embora tão cedo. Resolveu entrar assim mesmo. Olhou mais um pouco ao derredor, respirou fundo, falou para si da necessidade de fazer aquilo, sentiu suas veias saltitando e, num impulso, abriu a porta de uma vez. A amiga do padre se levantou com o susto e deu um grito histérico. Já o padre, como estava bêbado, demorou para entender o que havia acontecido.
__ O que está acontecendo... Adeobaldo? O que está fazendo aqui? __ Perguntou reconhecendo Adeobaldo, quando este tirou a touca. __ Mas o que houve com o seu nariz? Jesus... Você está com um nariz e bigode estranhos. __ Ela ficou assustada com a constatação de que havia algo de errado com Adeobaldo, que estava com uma enorme faca erguida. Ele não se importou com o comentário.
__ Bem que eu desconfiava, Francisca, você, uma freira, estava de servegonhisse com o padre.
Francisca ficou ofendida:
__ O quê? Você está doido? Me respeite, que eu sou uma freira, mulher santa e honesta.
__ Sei disso muito bem. __ Adeobaldo estava bem sarcástico.
__ Baldo, você está mesmo com um focinho de rato. __ Disse o padre, bêbado e rindo da situação.
__ Se eu fosse o senhor não ficaria rindo assim não, padre.
Francisca estava séria e tensa:
__ Focinho de rato? Como assim?
__ Francisca, cale tua boca, mulher. Olha só, eu vim aqui tratar de um negócio com o padre, não tem nada a ver contigo, está entendendo? Fica quieta senão enfio esta faca em teu bucho, vice?
Francisca ficou apreensiva e entendeu a seriedade da situação:
__ Calma Baldo, tenha calma. Prometo ficar quieta, homem.
__ Então fica! Sem barulhos. __ Adeobaldo apontou com a faca uma camiseta no chão, que possivelmente seria de Francisca, pois ela estava apenas de sutiã. __ Pega essa camiseta e amarra em um de seus pulsos.
A mulher entendeu de imediato o que era para fazer, mas ficou reticente por algum tempo.
__ Ande, vamos! Não tenho a noite toda.
Ela amarrou um dos pulsos e Adeobaldo terminou de amarrar o outro. Colocou um pano na boca dela e mandou-a sentar em um sofá e ficar quieta. Em seguida, ele pegou os braços do padre, amarrou forte, um contra o outro, pelo antebraço, e colocou, da mesma forma como fez com Francisca, um pano na boca dele, que tanto conversava. Em seguida ele sentou o padre perto da mulher e disse:
__ Padre, Francisca... Prestem atenção. Não quero machucar nenhum de vocês, mas vou precisar arrancar um pouco de sangue do senhor, padre.
Francisca arregalou os olhos. O padre, ébrio, achou que se tratava de uma brincadeira. Estava emitindo alguns barulhos como se quisesse falar, então Baldo tirou o pano da boca dele:
__ Pode arrancar, meu filho, eu deixo.
__ Ótimo, meu padre. Muito obrigado. __ Adeobaldo deu sua explicação para Francisca, e foi retirando as luvas.__ O padre sabe do meu problema Francisca. Fui amaldiçoado um tempo atrás e, pela maldição, eu iria me transformar em um rato. Essa maldição começou a fazer efeito por esses dias. __ Francisca ficava mais assustada quando via as mãos e os pés de Adeobaldo. __ Um ser, que eu não sei quem é, me disse que poderia acabar com essa maldição e me dar poder. Não estou preocupado com o poder, apenas com a maldição. Quero acabar com ela e ter uma vida normal, mas, para isso, ele pediu duas coisas: uma ciroula do padre e um copo com o sangue dele. A ceroula eu já tenho, e agora preciso retirar o sangue. Eu, sinceramente, não queria fazer isso, mas sou obrigado, já que minha esposa precisa de mim, pois está grávida. __ Francisca ouvia atentamente.
Após terminar de falar, Adeobaldo deitou o padre no chão, desamarrou os braços dele, amarrou um no pé do sofá e segurou o outro. Em seguida pegou a faca, mirou o pulso esquerdo e, quando ia dar um talho, foi atrapalhado pela vítima:
__ Baldo, o que está fazendo?
__ Estou tirando um pouquinho de seu sangue, meu padre. O senhor autorizou.
__ Eu?
__ Sim, não se lembra? __ Em seguida, quando o padre ia falar que não se lembrava, fez um talho pequeno no pulso da autoridade. O sangue escarlate do Ministro de Deus começou a jorrar. Ele pegou o recipiente que havia trazido, colocou debaixo do pulso e foi enchendo.
Francisca se agitava, mas tinha receio de tirar o pano da boca e de ser furada por aquele homem que parecia que estava incorporado. Enquanto Adeobaldo fazia seu trabalho, passando as patas de rato pelo pulso do pobre padre, este berrava de dor. Ele resolveu colocar o pano novamente na boca da vítima.
Após terminar sua missão, olhou no relógio. Já estava dando por volta da meia-noite. Ele deixou o padre de lado, desmaiado, bastante pálido, e disse para Francisca:
__ Francisca, me desculpe, mas tenho que ir embora. Não conte nada a ninguém. Diga que o padre tentou se matar, entendeu? __ A voz de Adeobaldo já estava um tanto embolada. Ele sentia os dentes afiados cortando a língua.
Fechou o recipiente, colocou a luva e a touca e, bem devagar, saiu da casa do padre em direção ao cavalo, que o esperava impacientemente. Soltou a corda que prendia o bicho e montou, num pulo. Deu uma esfolada no animal, que disparou em direção à encruzilhada, jogando pedras de cascalho da rua para trás.
Chegando lá, conforme havia sido combinado com o desconhecido, armou, no meio da encruzilhada, a prataria e, sobre ela, a ceroula do padre e um copo com o sangue, ainda quente. Em seguida gritou:
__ Agalharde, aqui está o que foi pedido. A ceroula do padre e o sangue dele. Por favor, me ajude, não me deixe virar um rato.
Quase meia-noite, Adeobaldo ouviu diversas gargalhadas. Olhou de um lado a outro para tentar saber de onde elas vinham, e, de repente, Agalharde apareceu em sua frente, todo sorridente.
Adeobaldo não entendeu qual era o motivo das gargalhadas. Então, o gigante falou:
__ Você é muito ingênuo mesmo, hein.
__ O que houve? Não fiz do jeito que você pediu?
Atrás de Agalharde, outros foram aparecendo, todos com aspectos conhecidos. Colocaram-se ao lado dele:
__ Eu falei que iria gostar de ver a sua derrota, não falei? __ Disse um dos desconhecidos.
Adeobaldo firmou o olhar no dono daquela voz e percebeu de quem era:
__ Mas é você? O que está fazendo aqui?
__ Sempre estive aqui. Todos nós sempre estivemos aqui.
Enquanto Adeobaldo ia conversando com o músico, com quem discutiu na Taberna, o grandalhão foi se transformando no músico mestre daqueles músicos. Adeobaldo ficou extremamente desconcertado. Fora feito de idiota, e agora estava ali, com um enorme problema. Lembrou até da promessa que havia feito para si mesmo, que, se encontrasse o mestre, cortaria o pescoço dele. Arrependeu-se da promessa.
O mestre disse:
__ Nada que você faça irá impedir a maldição de proseguir. Uma vez lançada, nunca mais retorna.
__ Mas eu fiz tudo o que você me pediu. __ Havia uma súplica na voz do homem, que era quase um rato.
__ Fez?
__ Fiz! Tá aqui, o sangue do padre quentinho, e a ceroula dele.
__ E o pedido de perdão que você não fez? Eu fiz isso para te ver aqui, acelerando a maldição. Observe que está dando meia-noite, e você se tornará num rato, e ficará rodando pelo sertão pernambucano até morrer, para nunca mais esbofetear ninguém.
Quando deu meia-noite, Adeobaldo soltou um gemido assustador, que muita gente na cidade jurava ter ouvido, e terminou de se transformar em um rato completo e gigante, com as orelhas afiadas, pelos crespos e duros por todo o corpo e corcunda. Seus dentes, protuberantes, eram visíveis quando ele jogava a língua áspera para fora, lambendo os lábios. Se agachou sobre as duas patas, enquanto os demais músicos se aproximavam. Aquele que havia sido socado por Adeobaldo, agora sorria sinistramente:
__ Bem feito. Por isso que eu disse que a maldição do mestre era melhor do que qualquer revide.
Todos zombaram dele, até que o mestre disse:
__ Vamos, meus músicos. Vamos procurar outra cidade, porque aqui não nos resta mais nada.
A banda foi embora com todos cantando elegremente. Lágrimas escorriam dos olhos daquele rato que, outrora, fora um homem chamado Adeobaldo. Como um rato, ficou perdido pelo sertão pernambucano, se alimentando de alguns outros pequenos roedores.
O padre resistiu à perda de sangue, pois foi salvo por Francisca, que correu, depois que Baldo foi embora, até a casa do médico e pediu ajuda.
Uma diligência foi até a casa de Jurema procurar por Adeobaldo, que ficou conhecido como Baldo, o rato, mas não encontraram ninguém além de Jurema. Grávida, foi levada para a cidade e ficou aos cuidados de Francisca, até o filho nascer. Quando o menino nasceu, ficou rejeitado por todos, pois tinha um narizinho bem achatado e úmido, e umas mãozinhas estranhas. Era a maldição dos músicos.
Adeobaldo sempre teve consciência, até a morte, de todos os acontecimentos. Não morreu de depressão, mas de velhice, e pôde perceber, a distância, seu filho sendo discriminado por ter uma aparência de rato.
No dia de sua morte, em uma região bastante deserta, quando já respirava ofegante e rastejava, o músico mestre apareceu diante dele. Eles trocaram os olhares, e o mestre disse:
__ Lembra-se de mim, Baldo?
O rato balançou a cabeça afirmativamente, bem lento.
__ E então, minha maldição se cumpriu ou não?__ Baldo ficou encarando-o com um olhar de completa derrota e de submissão. __ Vim ver você morrer e pegar o seu perdão, como havia falado.
O músico misterioso levantou uma das mãos, fez alguns cânticos e, assim, o rato tornou-se Adeobaldo. Ele voltou a ser homem, depois de muitos anos, e estava cabeludo, nu, sujo pela terra do sertão pernambucano, em seus últimos minutos.
__ Então, vai pedir perdão?
__ Você é muito poderoso, Agalharde. Aceito isso. __ Sua voz era fraquinha, quase inaudível. __ Porém quero lançar sobre você a minha maldição, a maldição do rato. Meu neto terá muito poder, e acabará com você e seus músicos. Essa é a maldição do rato. E não! Não vou pedir perdão...
Dessa forma Adeobaldo deu o último suspiro e entregou a alma. Durante todo o período que passou como rato, Baldo conheceu muita coisa e se tornou sábio, por isso a maldição que lançou sobre o músico.
Agalharde sentiu que a maldição era autêntica, mas manteve a postura e foi embora, sem o pedido de perdão de Adeobaldo. Estava desapontado por não ter tido aquele homem como um de seus músicos.
O que alguns dizem é que a maldição lançada sobre Adeobaldo foi revertida com o neto dele, que, mesmo tendo nascido como um rato, conseguiu muito poder e se tornou Presidente. Alguns falam que ele se tornou o chefe dos ratos, mas ninguém saberá se isso é verdade, antes de novas histórias.