Experiência do além

Eu confesso: gosto de cachaça!

Mas o meu gostar transborda os deleites de uma alma, digamos, moribunda.

Gosto não apenas do gosto, o que em muitas ocasiões já é o suficiente para um gostar abundante. Gosto também do efeito tranquilizador e real que me sobrevém. Vou tentar explicar esses efeitos reais, todavia, leitor atrevido, não se atreva a achar que estou mentindo, pois não estou. Estou apenas expondo a minha realidade.

A minha explicação começa lá pelos idos de 1970. Eu tinha meus vinte e poucos anos de idade. Era um belo jovem com cabelos negros volumosos e lisos. Minha carne era corada e meu corpo atlético.

Certo dia um amigo me convidou para irmos à Taberna do seu Aquino. Ele disse que lá havia uns tira-gostos e uma “cachaça bem quente”. Estava uma quase noite bastante fria, e, como era solteiro e já havia dado o meu dia de trabalho para o desenvolvimento da nação, achei interessante a proposta. Resolvi aceitar e fui.

Posso dizer sem medo de errar que foi a minha decisão mais acertada até hoje. Me proporcionou uma experiência tão bela e tão magnífica que me deixou lisonjeado. Mais adiante o curioso leitor saberá do que se trata.

Chegando lá, passei o olhar em volta e percebi que o ambiente era cruelmente feio, mesas antigas e sujas, algumas cadeiras quebradas jogadas pelos cantos e outras sem o encosto, ainda em utilização. O chão era de terra batida e o banheiro era uma fossa, como aquelas usadas em roças. Não era muito diferente do que era quase plenamente praticado na Bahia de antigamente.

Esqueci um detalhe, eu era um capixaba trabalhando naquela maravilhosa terra. Por ora, isso não quer dizer nada, mas fará algum sentido a posteriori.

Pois bem. Meu amigo Zé-do-mato pediu uma cachaça e um tira-gosto qualquer. O nome dele era esse mesmo, e não era apelido. Eu o acompanhei. Havia algumas mulheres, mas todas eram feias e quase todas eram putas. Não que eu não goste de putas, até que gosto, mas puta feia não dá. Eu realmente estava naquele lugar apenas pela cachaça, para esquentar o peito friento pelas noites estranhas e frias que assombravam a velha Bahia, e por alguma comida.

Ficamos naquele recinto bebendo e comendo por mais ou menos umas duas horas. Rimos bastante com as piadas do seu Aquino e tomamos muita cachaça. Acho que até mais do que eu havia programado. Quando já estava chegando aquele sono gostoso, pedi para pendurar a minha conta na conta do Zé, como fazíamos, e disse que estava indo embora, e que iria voltar no outro dia. Eu realmente gostei do lugar, apesar de ser muito feio, era aconchegante.

Acho que o seu Aquino foi com a minha cara. Ele disse que havia se lembrado de algo e falou-me com aquele sotaque baiano, sem me deixar sair.

__ Espeeeere homem. Não vá! Quero que experimente uma cachaça nova.

Ele se levantou da mesa onde estávamos, foi até um baú antigo que estava escondido a um canto da taberna e retirou uma cachaça diferente. Colocou-a sobre o balcão, à vista de todos.

Eu me levantei, já meio tonto ou muito tonto, não me lembro, cheguei-me à bancada e indaguei a respeito da nova cachaça. Meu amigo Zé-do-Mato ficou na mesa conversando com os demais. Alguns outros estavam jogando sinuca em uma mesa maltrapilha e torta.

__ O que é isso seu Aquino? Que cachaça é essa? __ Eu já estava íntimo do homem. Era o efeito do álcool, que me levava para outros mundos.

__ Um forasteiro passou por aqui por esses dias __ Disse o comerciante num sotaque carregado de baianês.__ Estava vindo de um lugar chamado... como é mesmo o nome? Ah, sim, Macondo.

__ Onde fica isso? __ Perguntei olhando curiosamente a divertida cachaça.

__ Não faço ideia moço. Ele trajava um sobretudo negro e só andava de noite. Então ele estava com fome e quis trocar essa cachaça, que dizia que era mágica, por um prato de comida.

Eu peguei a garrafa, bela e abaulada, e a observei cuidadosamente na direção de uma luz de vela bem fraquinha, que estava sobre o balcão. Estava escrito na frente “Produção Buendía”. Apenas isso, e um símbolo estranho. Zé-do-Mato não se conteve e disse.

__ Que nada Arturo. Esse cara deve ter pego essa cachaça em algum despacho.

Eu, de imediato, larguei a bebida por sobre a mesa, como se fosse uma cobra venenosa, já que sou bem supersticioso, e dei três batidinhas na madeira.

__ Cruz em credo!

O seu Aquino pegou a garrafa e, enquanto a olhava atentamente, refutou a ideia.

__ Zé, pode até ser de despacho homem, mas nesses quase cinquenta anos como dono desta taberna, posso afirmar categoricamente que nunca vi tal cachaça e nem parecida.

Ele girou apenas os olhos verdes penetrantes em minha direção, sem movimentar a cabeça, com seus velhos cabelos brancos e disse;

__ E aí Arturo, vai querer experimentar? Tem coragem?

Havia algo diferente naquela garrafa. Não era apenas a tampa dourada com detalhes negros, que refletia à luz fraca ao longo do balcão, que me chamava a atenção. Como disse, sempre fui muito surpersticioso. Então, por mais que eu tivesse receio daquilo, ao mesmo tempo era atraído pela curiosidade. Então tomei coragem e disse ao velho Aquino.

__ Então coloca aí, seu Aquino. Vamos experimentar essa aguardente e ver do que se trata.

Eu fiquei de olho bem aberto enquanto o seu Aquino abria a novidade. Zé-do-Mato, os outros amigos e as mulheres feias também ficaram de olhos em mim, e até pararam de conversar. Algumas putas não estavam nem ligando.

Quando a tampa foi aberta, uma leve fumaça saiu, como uma neblina branca e espessa, junto com um gemido de pressão se esvaindo, como se tivesse jogado uma gota d'agua dentro de uma panela bem quente. Eu disse.

__ Opa! Que negócio estranho seu Aquino.

Ele também estava receoso e curioso.

__ Eu disse Arturo. Não toma isso que vai dar bode.__ Disse o Zé.

Eu já estava decidido. Poderia sair um escorpião vivo daquela garrafa que eu, ainda assim iria, tomar daquele líquido colorido.

O seu Aquino pegou um pequeno copo transparente, colocou uma dose e me entregou.

__ Toma, guerreiro, vai fundo.

Talvez ele estivesse gozando de minha cara quando disse “vai fundo”, porque poderia prever algum acontecimento terrível quando a bebesse ou, talvez, estivesse apenas admirado com minha bravura. Lembro-me que muitos bravos perderam sua existência muito cedo. Essas questões filosóficas não me vieram, pois estava enfeitiçado demais com o líquido.

Aquela aguardente era de três cores: uma listra vertical que ficava no meio, transparente, uma à esquerda, vermelha, e outra à direita, verde. Eu fiquei olhando admirado e pensando; “como pode este líquido ter diferentes cores na vertical?” Daí comecei a ficar realmente com medo. Deixei de lado o receio e pensei em como se toma um remédio bem amargo: fecham-se os olhos e engole-se tudo de vez. Foi o que eu fiz. Zé-do-Mato ficou rindo da careta em que minha face se transformou.

__ E aí, Arturo, está bem? __ Disse o Zé, após alguns segundos.

Aquela bebida quente e estranha penetrou meu corpo queimando todas as minhas vísceras. Senti um fogo saindo dos meus poros em formato de agulha, rasgando-me em mil pedaços. Um calor interno acentuou-se, e era como se estivesse perto de soltar bolas de fogo. Tudo parecia muito aguçado. Conseguia ouvir o latido de um cachorro a quilômetros. Tive uma visão telescópica. Tudo isso não demorou muito tempo. Oscilei para frente e para trás, e o mundo girou. Todos ficaram em volta de mim, preocupados, pensando que a cachaça estivesse envenenada.

__ Arturo, tudo bem contigo?__ Perguntou seu Aquino, meio preocupado.

Por um momento fiquei inerte, e tudo voltou ao normal.

__ Sim, seu Aquino, estou ótimo. Essa bicha é realmente braba hein!!

Falei com a voz caída.

Todos riram após um instante de apreensão. Fiquei mais algum tempo com eles contando a experiência. Depois, me despedi de todos e rumei para casa, já que, no outro dia, teria que acordar cedo para o trabalho. Zé-do-Mato resolveu ficar mais um pouco, pois estava interessado em alguma mulher feia. Não sei se era puta, mas tenho certeza de que era muito feia.

A caminho de casa, a velha aguardente começou a fazer um efeito ainda maior. Não sei por qual motivo ou como, mas comecei a ver coisas a que geralmente nem prestava atenção. Não fiquei com medo, e isso era o mais engraçado ou interessante. Apenas fiquei curioso, e assim observava tudo. Consegui ver um gato esperando para dar um bote em um rato, e eles estavam cerca de quinhentos metros de mim. Ouvi o decolar de um avião, sendo que o aeroporto mais próximo estava a cerca de uma hora de distância, de carro. Alguns vultos estranhos e diversas pessoas pelo caminho que eu fazia, sendo que, naquele caminho, quase não passava ninguém, pois era um atalho. Era como se todos me conhecessem, me cumprimentavam pelo meu nome.

Mesmo assim, empurrando a minha velha bicicleta em passos lentos e módicos, não me importava e seguia adiante, pois tinha como destino a pousada maltrapilha onde eu me acomodei por aqueles tantos dias.

Acho que estava um pouco de fogo, pois me peguei conversando sozinho e cantando um tal de Alceu Valença, que nem conhecia como tal. Nunca fui de cantar Alceu e nem sabia nenhuma música do Valença, para o meu gosto, pois não gostava do sujeito, e nem mesmo sabia que existia, pois o homem é mais novo do que eu, por isso achei que estava bêbado.

Em minha rota, havia um cemitério grande e bonito. A bem da verdade, antes eu o achava bastante feio, mas, depois que parei em frente a ele, naquela noite, o achei bonito. Suas curvas sinuosas me faziam lembrar de algumas esculturas barrocas. Seu portão, quase todo fechado de um aço grosso e maciço, como se quisesse aprisionar defuntos, estava semiaberto. Dava para perceber, por entre as frestas, uma luz amarela bem ao longe. Era como se estivesse ocorrendo uma festa lá dentro; pessoas entravam e saíam. Havia algo estranho, porque, naquele cemitério, quase nunca tinha tanto movimento, ainda mais de noite. Meus pelos ouriçaram. Pensei comigo, enquanto me escondia atrás de uma enorme coluna que dava apoio ao portão: “meu Deus, essas pessoas são fantasmas?”.

Eu vi um casal entrando, e eles me cumprimentaram, mesmo eu estando escondido. E juro que pude perceber um risinho no rosto da mulher em minha direção. Eu não disse nada e apenas fiquei observando, pois não sabia quem eles eram. Um sujeito enorme com cara de bobo saiu do cemitério, e não me viu. Seguiu alguma erma direção. Minha bicicleta estava encostada no muro, e eu, encolhido, perto da enorme coluna.

De repente, para meu assombro, um outro sujeito gordo e cheio de sardas na cara estava entrando. Quando me viu, retornou e, com as mãos na cintura, disse-me.

__ Ah! Aí está você, por que está se escondendo? Estava te procurando.

Pensei comigo; “Bom, não é a morte, pois a morte usa um capuz e uma foice e não é gorda.” Estranhamente eu não sentia medo daquele sujeito. Ainda encolhido, perguntei.

__ Quem é você? __ Estava parecendo uma criança indefesa.

__ Você não sabe quem eu sou?

__ De modo algum. Nunca te vi nem mais gordo e nem mais magro.

__ Talvez mais magro não tenha me visto mesmo, já que sou gordo a vida inteira. Mas, vamos entrar?

Não entendi por que ele disse aquilo, mas não me preocupei. Apenas me coloquei de pé e olhei bem para a cara dele. Tentava ver se havia algum resquício de morte.

__ Você é a morte? __ Estava fazendo qualquer pergunta estranha, já que estava tudo muito estranho mesmo.

O sujeito gordo deu uma gargalhada estrondosa, ainda com a mão na cintura.

__ Eu tenho cara de ser a morte?

__ E a morte tem cara?

__ Não sei! Dizem que tem, mas realmente eu acho que não. E então, vamos entrar? Estão todos te esperando. __ Ele insistia em me levar para dentro do cemitério.

Eu saí de perto da coluna e inclinei-me para ver o que se passava lá dentro, ao mesmo tempo em que três crianças entravam sorridentes e brincando com o gordo.

__ Ei, João, tudo bem? __ Disseram, em um único som.

__ Ei, Maria, ei, João, ei, Maria.

Achei curioso porque havia apenas João e Maria, mas não disse nada. O homem disse novamente.

__ Vamos?

Eu perguntei sobre minha bicicleta, e ele disse que eu poderia deixar lá mesmo, na entrada, pois ninguém iria roubar. Eu também achava que ninguém iria roubar, já que não passava ninguém naquele lugar, mas depois de tanta gente entrando e saindo daquele cemitério, já estava em dúvida.

__ Ok, vamos.

Como sou sujeito homem e estava um tanto alterado pela cachaça misteriosa do seu Aquino, resolvi entrar e ver, de uma vez por todas, do que se tratava aquela festa. Acho que aquilo foi o fim do mundo para mim, aparentemente. Eu não sabia o que fazer, se fugia, se gritava, se chorava. Fiquei estupefato.

Dentro do cemitério estava tudo muito claro, como se várias velas estivessem acesas ao mesmo tempo, apesar de não haver vela alguma ou nenhum outro ponto de iluminação. Olhei para trás e não mais vi o portão. Agora tudo era parede, feita daqueles tijolinhos de churrasqueira. Eu olhei para o gordo, chamado João e, quando ia perguntar, vi aquele risinho na cara dele, como se estivesse satisfeito com o meu medo. Deixei de lado a ideia.

Ele se adiantou e, transbordando alegria, foi conversando com um e com outro.

__ Pessoal, olhem quem está aqui conosco. É o Arturo.__ Ele realmente estava feliz.

Eu me senti como um “popstar” em meio a um monte de gente estranha, ou morta, não sei dizer, mas aparentemente conhecida. Apenas aparentemente, já que não me recordava de ninguém que ali estava e, de tão aconchegante que a situação se apresentava, não me escandalizei com o que estava vendo. Entrei na festa e comecei a dançar a dança daquele ambiente. Havia um esqueleto do meu lado direito e me estendeu a mão cumprimentando-me.

Alguém gritou.

__ Tio Albert! Deixa disso. Ele não vai te cumprimentar. Sua mão é só esqueleto.

O pavor ficou estampado em minha face, mas ainda assim o cumprimentei. Ele se encheu de alegria. Olhei para outras pessoas e havia gente sem cabeça, sem olhos, sem braços. Outros sem pernas, pessoas idosas e crianças. Era realmente uma festa. Havia pessoas bonitas e feias, outras de branco e outras de preto.

Eu estava em uma estradinha, na qual havia plantas de copo de leite em ambas as margens. Tudo cheirava à violeta. A estrada era muito longa, mas dava para ver que a festa era gigante, com um monte de gente e que, bem distante, no rumo da estradinha, havia algo com uma luz branca bem intensa, lá em seu final.

O gordo agora pegava em uma de minhas mãos e puxava-me, porque minhas pernas não queriam obedecer mais aos meus comandos.

__ São pessoas mortas?

__ O que você acha?

__ Acho que são.

__ Você achava que ia encontrar pessoas vivas, dentro de um cemitério, nessa hora? Quase meia-noite?

É! De fato isso era bastante suspeito.

__ Eu estou morto?

__ Estar vivo ou estar morto é uma questão relativa, de ponto de vista.

__ Ora, claro que não. Se um ônibus passa por cima de você, você morre. Isso não é um ponto de vista, é um fato.

A ideia de estar morto já havia tomado conta de mim, de modo que o medo já tinha ido embora. Era como se eu já tivesse aceitado o fato de que iriam me enterrar, ou que alguém já havia me enterrado há muito tempo, por isso passei a conversar mais tranquilamente.

__ Nós achamos diferente.__ Disse o gordo.__ Achamos que estar vivo ou estar morto trata-se de pertencer a dois mundos diferentes. Então, quando você passa pelo portal, você passa de um mundo para o outro, seja da vida para a morte, como vocês dizem, ou seja, da morte para a vida.

Aquele homem parecia um filósofo grego. Já aceitando que estava morto, passei a gostar dele e a olhar melhor o entorno.

__ Quando eu passei pelo portal?

__ Quando? Você passou?

Quando ele disse aquilo, eu me embolei todo. Não consegui pensar direito, mesmo não estando mais de fogo.

__ Ora, se estou vendo gente morta, então passei pelo portal. Lá atrás havia um portão, aquele é o portal?

__ Ah! Mas ver o outro mundo não quer dizer que você passou pelo portal. Existem outros métodos. E outra, aquele não é o portal.

__ Quais?

__ Vou lhe contar...

Quando o homem ia me contar, uma mulher me gritou de longe, e veio ao meu encontro.

__ Aí está ela, ansiosa te esperando. __ Ele disse aquilo escondendo a boca, como se fosse um segredo.

__ Arturo, meu doce. __ Disse, elegantemente, aquela desconhecida.

A mulher que me apareceu era muito bonita. Ela aproximou-se de mim, deu-me um enorme abraço e um beijo estalado na bochecha, como se me conhecesse há muito tempo. Eu fiquei olhando para ela fielmente, tentando me lembrar de onde a conhecia, até que as lágrimas brotaram de meus olhos, de forma impulsiva. Chorava copiosamente.

__ Meu doce, não chora. Olha para mim. __ Disse, suavemente, a ex-desconhecida.

Quando eu consegui falar, olhei para ela e peguei em seus lindos cabelos ruivos, tocando-os ligeiramente. Disse-lhe bem baixinho.

__ Mãe! Mãezinha!__ As palavras ecoaram de minha boca involuntariamente, e então repeti.

__ Mãe!

__ Estou aqui, meu Arturo.

Nunca tinha ouvido a voz de minha mãe. Ela havia morrido quando eu tinha dois anos de idade. Apenas ouvi relatos de que a voz dela era calma como um oceano de amor. Me falaram que ela era a mulher mais bonita da capital do Espírito Santo, e agora ela estava ali em minha frente.

__ Como você está crescido meu doce. __ Ela sempre me chamava assim, de meu doce.

__ Mãe! Como eu sempre quis ouvir a sua voz.

__ Está tudo bem contigo? Tem cuidado de sua saúde? Seu pai está bem? Já casou? E você, já se casou?

__ Não, mãe, ainda não me casei e estou bem de saúde. Papai está bem e ainda não se casou. Ele chora pela senhora todos os dias.

O gordo ficou do meu lado, e minha mãe do outro lado, abraçada ao meu braço. Andamos por aquele caminho nostálgico por algum tempo, que poderia parecer horas. Então perguntei a ela.

__ Como estou aqui neste mundo, mãe?

__ O João vai lhe dizer.

__ Como estava lhe dizendo, existem algumas formas de você visualizar o outro mundo. Aquele líquido que você tomou, na Taberna do seu Aquino, é um líquido mágico. Ele permite a você olhar o outro mundo. Existem outras diversas formas, mas não precisamos comentar por agora. Deixa para outra ocasião.

Andamos mais algum tempo em direção àquela enorme luz que se aproximava. Ela ficava mais forte a cada instante. Depois de muita conversa, minha mãe disse, quase me interrompendo:

__ Filho, foi muito bom te ver, mas temos que ir embora.

__ Não, mãe, não vá. Eu quero ficar aqui pro resto da minha vida com a senhora.

__ Mas você tem ainda uma vida tão bela.

__ Não me importa mãe, eu quero a senhora.

Abracei minha mãe o mais forte que eu pude para ninguém tirá-la de mim outra vez. O homem gordo disse.

__ Arturo, um dia você verá sua mãe outra vez, e por mais tempo. Mas, por agora, temos que ir embora.

Ele falava não mais como um filósofo, mas como um anjo. Minha mãe me deu mais um abraço apertado e se despediu de mim.

__ Mande um abraço pro seu pai.

Eu quis lutar para que ela não fosse embora. De repente tudo ficou muito claro. Podia jurar que havia ficado cego. Estava chorando, sentindo que ela, minha mãe, estava de novo indo embora. As emoções saltitavam por minha existência, quando alguém me cutucou com um pedaço de pau.

__ Moço! Acorde!

Eu abri os olhos e dei um grito. Meus olhos estavam molhados de tantas lágrimas.

__ O senhor está bem? __ Disse um coveiro, com o seu baianês.

__ Onde estou?

__ Ora, o senhor não sabe?

Olhei em volta e percebi que estava dentro do cemitério, em cima de uma tumba. Havia dormido sobre ela. Um outro coveiro fez um gracejo muito sem graça.

__ Óia, homem! Cuidado que tem coveiro aqui que gosta de futucar defunto. Quando entra um bêbado, então, aí que ele faz a festa.

Os dois coveiros deram enormes gargalhadas. Eu limpei minhas lágrimas noturnas e olhei a lápide. Havia uma foto e, quando me aproximei para ver melhor, para minha surpresa, era o mesmo homem gordo do meu sonho, ou fantasia, ou seja lá o que for. Eu saí em disparada pela porta do cemitério e nem disse obrigado ou bom dia para os coveiros, que ficaram rindo do meu desespero. O sol estava despontando, enorme e imponente, em nossa cabeça.

Saí pelo portão e, para minha satisfação, minha bicicleta estava no mesmo lugar. Peguei-a e fui correndo à Taberna do seu Aquino.

__ Seu Aquino! Seu Aquino! __ Gritei. Era algo em torno de seis horas da manhã.

O homem acordou com uma cara de poucos amigos.

__ Sujeito, e isso lá são horas de perturbar alguém? Diga o que quer e vá-se embora.

Ele não parecia mais o mesmo sujeito educado da noite anterior, mas mesmo assim insisti.

__ Seu Aquino, me desculpe por tê-lo acordado. Mas ontem eu tomei uma cachaça aqui. Queria comprá-la.

__ Ora... e isso não poderia esperar até eu acordar não?

O homem realmente estava irritado.

__ Não, seu Aquino, porque é muito sério.

__ Sério! Sei o que é sério, seu cachaceiro. __ O homem coçou o saco, raspou a garganta e cuspiu algo nojento no chão. Ficou me olhando por alguns segundos, com a cabeça inclinada para trás. Em seguida disse: __ Espere que vou pegar.

Esperei ansioso por cerca de cinco minutos, o que pareceu uma eternidade. Quando ele voltou trazia uma meiota chamada “cana do agreste”. Fiquei completamente desapontado.

__ Mas, seu Aquino, não é essa. Foi a que eu tomei por último.

__ Homem, cê tá me fazendo de besta é?

__ Não, seu Aquino, claro que não.

__ Ocê tomou apenas essa aguardente a noite inteira. Depois de ter dado uma trepada em uma de minhas putas, saiu bêbado igual a um zumbi. Não conseguia nem subir na bicicleta.

__ Não teve uma cachaça especial não?

__ Homem, e eu lá vou vender cachaça especial em um puteiro fudido desses? Ande, vá procurar o que fazer que eu vou voltar a dormir. E olha, vou colocar em sua conta.

Tive apenas de agradecer pela gentileza e me desculpar pelo ocorrido.

Depois daquele dia, os meus dias nunca mais foram os mesmos. Procurei saber mais sobre minha mãe, sobre algumas pessoas de que me lembrava da festa, e todas estavam mortas há muito tempo. Se foi um sonho, ou se foi realidade, não sei, o que sei é que minha vida mudou depois daquela experiência.

Postagens mais visitadas deste blog

Um rato chamado baldo.